Charge do JCaesar | VEJA
Uirá Machado
Folha
Os cientistas políticos Marcus André Melo e Carlos Pereira sempre questionaram as análises que anteviam o apocalipse político após a eleição de Jair Bolsonaro (PL). Agora, com as turbulências do 8 de janeiro no retrovisor, eles lançam um livro com título autoexplicativo: “Por que A Democracia Brasileira Não Morreu?” (Companhia das Letras).
Embora os autores reconheçam que a década de 2013 a 2023 tenha sido um período fecundo de crises, eles sustentam que não há nada errado com o sistema presidencialista brasileiro —chamado de presidencialismo de coalizão— e defendem que as diversas ameaças à democracia feitas por Bolsonaro jamais tiveram credibilidade.
PARTIDOS DEMAIS – As duas afirmações devem ser lidas em conjunto: para os autores, se o golpe nunca teve chances reais de se concretizar, foi devido a características do nosso sistema político que, em geral, são vistas como graves problemas à espera de reformas. O elevado número de partidos é um exemplo.
“Se por um lado a fragmentação partidária pode ser considerada um empecilho à governabilidade, por outro ela pode funcionar como um antídoto institucional contra iniciativas iliberais e antidemocráticas de presidentes populistas”, escrevem Melo –que é colunista da Folha — e Pereira.
Bolsonaro, afinal, ascendeu ao poder com uma retórica anticorrupção e antissistema. Era, por isso mesmo, um presidente sem maioria no Congresso, e procurava governar por meio da conexão direta com seus eleitores.
CEDEU AO CENTRÃO – Não demorou, contudo, para ele dar um cavalo de pau em sua estratégia. A incompetência durante a pandemia de Covid e as investigações de corrupção que avançaram dentro de seu clã levaram Bolsonaro a ceder ao centrão.
Apesar de seu discurso autoritário, o então presidente barganhou com o Congresso em condições desfavoráveis. Conseguiu votos suficientes para barrar eventual processo de impeachment, mas não para tocar sua agenda.
Tanto assim que, como apontam Melo e Pereira, Bolsonaro teve, desde Fernando Henrique Cardoso, a menor taxa de sucesso nas iniciativas legislativas presidenciais, o maior número de vetos derrubados pelo Congresso e o menor percentual de medidas provisórias convertidas em lei.
HÁ OBSTÁCULOS – Dito de outra forma, o fato de não ser fácil montar uma coalizão governista no Brasil também serve como obstáculo aos pendores autocráticos, pois a enorme dispersão dos parlamentares leva o presidente a sofrer derrotas em propostas que se distanciem da opinião média do Legislativo. Iniciativas extremistas estão fadadas ao fracasso.
Assim, se estão certas as análises segundo as quais ditadores modernos corroem o poder por dentro, com a aprovação paulatina de medidas antidemocráticas, o Congresso brasileiro funciona como resistência natural.
E não é a única. Também tiveram papel decisivo na manutenção da democracia o federalismo forte, a sociedade civil vibrante, a imprensa livre e o sistema de controle independente –com destaque para esse último ator, em particular o Supremo Tribunal Federal.
SEM CHANCE – Segundo Melo e Pereira, esse conjunto de elementos explica por que Bolsonaro fracassou. Eles argumentam que o desfecho seria o mesmo caso não houvesse a pandemia, ou mesmo se o ex-presidente fosse mais hábil em sua tentativa de enfraquecer as organizações de controle.
“As instituições forçaram Bolsonaro a se comprometer e abandonar sua retórica antissistema”, escrevem os autores, para os quais o ex-presidente não tinha condições políticas de aprovar retrocessos importantes – haja vista a não adesão das Forças Armadas. Para eles, portanto, as instituições tomaram conta da democracia brasileira; não foi sorte nem incompetência do golpista.
Nessa leitura, um Bolsonaro bloqueado por todos os lados precisou se equilibrar no fio da navalha, preservando a narrativa antissistema como forma de manter os eleitores fiéis, mas sem levá-la muito longe para não correr riscos de ter o mandato abreviado – e, de quebra, criando uma justificativa para eventual derrota nas urnas eletrônicas.
RAZÃO DA INSISTÊNCIA – Escrevem Melo e Pereira: “Essa é a razão pela qual Bolsonaro, como outros populistas em democracias estáveis, continuou a confrontar instituições, apesar de suas chances de sucesso serem bastante pequenas ou quase nulas”.
Os autores citam diversos estudos acadêmicos segundo os quais o enfraquecimento dos líderes populistas é mais comum do que seu sucesso na tentativa de asfixiar o sistema. De acordo com os autores, não houve nada de fortuito nesse quadro, e nem mesmo um segundo mandato teria mudado a história. O sistema de freios e contrapesos teria permanecido robusto, e a sociedade, vigilante.
Mas não houve reeleição. “O país retornou para seu nível de democracia anterior. Na realidade, nunca foi alterado de forma significativa”, escrevem os autores. “E, por fim, Bolsonaro aceitou o resultado da eleição quando tentava mais um mandato, apesar do grave incidente em 8 de janeiro de 2023.”
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Análise perfeita. Já externamos idêntica opinião várias vezes, aqui na Tribuna da Internet. Mas acrescentando um detalhe importantíssimo. Não existe nem existirá golpe no Brasil sem a participação do Alto Comando do Exército. Se os generais não querem, pode esquecer. (C.N.)