Reeleição do presidente fortalece Executivo em relação ao Legislativo

Charge do JCaesar | VEJA

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Marcus André Melo
Folha

“Não tem nenhum país importante do planeta que não tenha reeleição”, disparou o presidente Lula numa roda de senadores no Palácio da Alvorada. Lula está errado. Já discuti aqui esta questão. Na região do mundo que concentra a vasta maioria das democracias presidencialistas do planeta —a América Latina— os países que ocupam o topo nos rankings de democracia —Uruguai, Costa Rica e Chile— não permitem a reeleição imediata de presidentes. Tampouco o México, cuja importância não precisa ser enfatizada.

Fora das Américas não há democracias presidencialistas puras. Nos regimes semipresidenciais da África, Ásia e da Europa do leste, os presidentes são criaturas institucionais radicalmente distintas. E obviamente, nas autocracias a questão perde totalmente o sentido, como assistimos agora com a farsa da reeleição de Putin e de Maduro.

PARLAMENTARISMO – A Europa é fundamentalmente parlamentarista, e aqui não há mandato fixo para o primeiro-ministro — ele pode ser de alguns meses ou anos. No semipresidencialismo francês e português, só é possível uma única reeleição do presidente.

Mas na França, a coabitação leva o presidente a se resignar a conviver com um primeiro-ministro adversário nomeado pelo Parlamento que assume o poder Executivo. Os limites aos mandatos assumem outro sentido à luz dessa dinâmica.

Vale destacar um aspecto absolutamente singular do caso brasileiro. A dinâmica política da discussão entre nós não envolve apenas presidentes, mas também governadores e prefeitos, sobretudo os primeiros.

OUTROS EXEMPLOS – Nos EUA e Argentina, o problema não se coloca pela diversidade de arranjos institucionais, sobretudo nesta última, onde as constituições provinciais variam quanto à possibilidade de reeleição, à existência de bicameralismo (várias delas têm Senado), regras eleitorais, regimes municipais etc.

A emenda da reeleição (PEC 16/1997) em nosso país teve apoio massivo dos governadores e prefeitos que eram titulares do cargo.

Seu efeito institucional mais amplo foi ter fortalecido o poder Executivo vis-à-vis o Legislativo, como mostrei em “Reformas constitucionais no Brasil: instituições políticas e processo decisório” (Revan, 2002).

EFEITO PATO MANCO – O efeito esperado da vedação da reeleição ora proposta no Brasil é o oposto: reduzir o poder de fato do Executivo pelo efeito pato manco.

O cálculo individual do apoio no caso atual passa mais uma vez pelos governadores, com base nos possíveis cenários para a eleição de 2026, mesmo que a proposta de mudança preveja a vedação só a partir de 2030.

A proposta de vedar a reeleição consecutiva do poder Executivo no país está atrelada à simultânea sincronização das eleições legislativas, de difícil viabilização, mas poderá caminhar sozinha.

3 thoughts on “Reeleição do presidente fortalece Executivo em relação ao Legislativo

  1. Uma notícia sobre Gaza que não deve ser ignorada

    © Fornecido por Agência Pública

    “Flood the zone with shit” ou “ou inundar a opinião pública de merda” é um dos mantras de Steve Bannon, um dos principais gurus da extrema direita populista global. Bannon foi um dos que perceberam que, na era digital em que produzir conteúdo é tão barato, em vez de esconder a verdade, a melhor maneira de manipular a opinião pública é oferecer tanta, mais tanta informação, que o ruído causado pela enxurrada impede que a maioria das pessoas entenda o que de fato é importante.
    A estratégia é apenas uma reedição de um clássico das relações públicas, a criação de “cortinas de fumaça” destinadas a desviar a atenção de determinada notícia que, se veiculada, causaria enorme prejuízo; vale para empresas, políticos, organizações ou países.
    Guardadas as devidas proporções, também assistimos a essa enxurrada de informações vindas dos dois fronts de guerra que se desenrolam atualmente, na Ucrânia e em Israel.
    A arte da guerra sempre dependeu também da disputa narrativa, e também se vale do fato de que inundar o debate público de informações desencontradas é, hoje, extremamente barato.
    Na cacofonia do excesso de informações digitais, lances importantes sobre o desenrolar dessas histórias acabam se perdendo. Chamo atenção para um deles.
    Na semana passada, a agência de notícias Reuters publicou uma matéria de extrema importância para quem segue o teatro da guerra de Israel. Um relatório feito pela agência da ONU encarregada de atender os refugiados em Gaza, a UNRWA, descreveu que funcionários da agência foram detidos por forças israelenses e sofreram torturas, como espancamentos, waterboarding – forma de tortura que simula afogamento – e ameaças aos seus familiares, para que confessassem terem ligações com o Hamas.
    “Os membros da equipe da agência foram sujeitados a ameaças e coerção pelas autoridades israelenses durante a detenção e pressionados a fazer declarações falsas contra a agência, incluindo que a agência tem afiliações com o Hamas e que membros da equipe da UNRWA participaram das atrocidades de 7 de outubro de 2023”, diz o relatório.
    A matéria da Reuters avisa que a UNRWA “negou-se” a dar as transcrições das entrevistas para serem revisadas pelo jornalista – um pedido que em si só demonstra cabalmente como tudo que vem da Palestina é tido como mentira a priori.
    Eu não vi o tal relatório, e menos ainda as transcrições, e acho que ele deve ser lido com ceticismo, assim como as alegações de Israel. Mas chamo atenção para ele, justamente porque o ceticismo, nesta guerra, tem dois pesos e duas medidas.
    Toda a história envolvendo as acusações contra a agência da ONU tem sido utilizada como uma narrativa militarizada a favor de Israel. Uma narrativa que, como veremos, tem sido distribuída em momentos estratégicos em que o Estado israelense quer desviar a atenção.
    Lembremos. A denúncia de Israel a respeito de 12 funcionários da ONU que teriam participado do atentado terrorista do ano passado passou a ser ventilada no mesmo dia em que o Tribunal Penal Internacional, em Haia, emitiu uma decisão provisória sobre acusações de genocídio feitas pela África do Sul. O tribunal ordenou que Israel agisse para evitar a prática de genocídio pelos seus soldados e permitisse a entrada de ajuda humanitária.
    O ministro de Defesa de Israel, Yoav Gallant, passou a aparecer em canais e dar declarações a jornais, despejando a conta-gotas detalhes das acusações. Falou à Fox News no dia 10 de fevereiro; no dia 15, o seu ministério publicou os nomes dos 12 acusados a toda a imprensa, alimentando um ciclo noticioso.
    Ao receber a denúncia, o comissário-geral da UNRWA , Philippe Lazzarini, imediatamente demitiu os funcionários e iniciou uma investigação sobre o caso. Isso não impediu 16 países de suspender o financiamento para a agência.
    Na guerra informacional, timing é tudo.
    A notícia tornou-se o escândalo da vez e “flodou” o noticiário.
    A agência da ONU chegou a publicar um esclarecimento que ninguém leu sobre como verifica se seus funcionários têm ligação com facções políticas:
    Assim como qualquer outra organização da ONU, a UNRWA realiza verificações detalhadas de referências para qualquer funcionário que a Agência recrute.
    Além disso, a UNRWA compartilha os nomes, números de funcionários e funções de todos os membros da equipe a cada ano nas cinco áreas de operações com as autoridades locais (Líbano, Jordânia, Síria e Autoridade Palestina) e, para a Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, e Gaza, com Israel como potência ocupante. Isso significa que, a todo momento, os Estados anfitriões e Israel estão totalmente informados e cientes dos detalhes de todos os membros da equipe que trabalham para a UNRWA. Outros Estados-Membros da ONU também recebem essas listas mediante solicitação.
    Os nomes das doze pessoas contra as quais foram feitas alegações foram compartilhados várias vezes com Israel e outros Estados-Membros. Até janeiro de 2024, a UNRWA não havia recebido nenhuma indicação das autoridades relevantes sobre qualquer envolvimento de seus funcionários em grupos armados ou militantes. Além disso, a Agência verifica seus funcionários semestralmente em relação à Lista Consolidada de Sanções do Conselho de Segurança da ONU.
    Mas de que se trata tais acusações? Com base em um dossiê entregue por Israel ao governo americano, o New York Times escreveu uma reportagem reveladora.
    Segundo ela, dos 12 acusados, sete davam aulas em escolas da UNRWA em Gaza, ensinando disciplinas como árabe e matemática. Outros dois trabalhavam nas escolas, na área administrativa.
    A acusação mais detalhada, segundo o New York Times, diz respeito a um conselheiro escolar que é acusado de ter coordenado com o próprio filho para sequestrar uma israelense.
    No entanto, a reportagem afirma que o jornal conseguiu corroborar a identidade apenas de um dos acusados.
    A UNRWA é uma das maiores empregadoras em Gaza, com mais de 13 mil funcionários, em sua maioria palestinos. É, também, a agência que consistentemente denuncia, com dados confiáveis, a situação de calamidade. Seu último boletim relata que 1,7 milhão de pessoas, mais de 75% da população de Gaza, teve que sair de suas casas. Cento e sessenta e dois funcionários da agência já morreram devido aos bombardeios.
    Mais de um mês depois, a dúvida sobre a veracidade daquelas acusações permanece.
    Agora, o Canadá e a Suécia anunciaram que retomarão o financiamento à agência. A retomada também recebeu pouca atenção na imprensa.
    Nos Estados Unidos, por sua vez, país que era o maior doador da agência, será difícil voltar atrás em um ambiente tão polarizado. Um exemplo disso é o fato de que o comitê de assuntos internacionais do congresso americano votou por aprovar uma nova lei que proibiria permanentemente qualquer financiamento à UNRWA.
    Ou seja: mesmo que se descubra que as acusações eram infundadas – e, quem sabe, o relatório da ONU estava certo –, o dano está feito.
    Seja qual for a verdade.

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