Moraes autoriza general acusado de planejar atentado contra Lula a fazer o Enem

Fernandes está preso provisoriamente em uma unidade militar

Márcio Falcão
Gustavo Garcia
G1

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), atendeu  a um pedido da defesa do general da reserva Mário Fernandes e autorizou a saída do militar da unidade em que está preso para realizar as provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) nos dias 9 e 16 de novembro.

De acordo com as investigações, o militar do Exército elaborou, em novembro de 2022, logo após as eleições presidenciais, um plano para matar Lula, Geraldo Alckmin e Moraes, que à época presidia o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O planejamento faria parte de trama para dar um golpe de Estado.

ESCOLTA – Conforme a decisão de Moraes, Mário Fernandes poderá sair do Comando Militar do Planalto, onde está preso provisoriamente, e se deslocar, nos dias de prova, para a Universidade de Brasília (UnB), para realizar o Enem. O deslocamento será feito com escolta policial e os agentes deverão agir de forma “discreta” e “sem ostensividade no uso de armas”. Após a realização dos testes, o militar deverá voltar à unidade militar em que está custodiado.

No pedido encaminhado a Alexandre de Moraes, a defesa de Mário Fernandes afirmou que o militar tem interesse em fazer o Enem com o objetivo de “progressão educacional e profissional” também como possibilidade de diminuição de uma eventual pena, caso seja condenado pelo STF.

NÚCLEO 2 – Mário Fernandes é réu do núcleo 2 da trama golpista, ao lado de outras cinco pessoas. O julgamento desse grupo está previsto para começar no dia 9 de dezembro.

“O estudo, mesmo que de forma autodidata, como é o caso da preparação para o Enem, é um fator de ressocialização e deve ser prestigiado. A aprovação no exame autoriza a remição de pena, independentemente de o custodiado já ter concluído o ensino médio anteriormente”, afirmam os advogados do general.

Para haver Justiça fiscal de verdade, é preciso aprimorar a taxação do capital

Arquivo do Google

Pedro do Coutto

A recente aprovação, no Senado, da isenção do Imposto de Renda para salários de até R$ 5 mil e da cobrança adicional sobre rendimentos acima de R$ 50 mil foi celebrada como um avanço na redução das desigualdades. À primeira vista, a medida reorganiza o peso tributário: alivia o bolso de quem ganha menos e aumenta a contribuição de quem está no topo da pirâmide salarial. Trata-se, portanto, de um gesto alinhado ao princípio da progressividade – segundo o qual quem pode mais, paga mais.

Mas a questão não se encerra aí. O debate sobre justiça fiscal no Brasil não é apenas sobre “quem ganha quanto”, e sim sobre de onde vem a renda. A economia é marcada por duas fontes principais: o trabalho e o capital. Quando falamos de salários – sejam eles de R$ 2 mil ou R$ 50 mil – estamos falando sempre de remuneração pelo trabalho. Ao taxar mais quem ganha mais salário, o Estado está apenas redistribuindo dentro da mesma categoria: trabalho transferido para trabalho. A origem da renda permanece a mesma.

LIMITE ESTRUTURAL – É nesse ponto que o efeito transformador da medida começa a esbarrar em um limite estrutural. O Brasil continua sendo um dos países onde a tributação sobre o trabalho é elevada, enquanto a carga sobre o capital — lucros, dividendos, grandes patrimônios e heranças — permanece baixa.

Relatórios de instituições como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Banco Mundial têm apontado há décadas a distorção brasileira: somos uma das maiores economias do mundo que menos tributa renda do capital. O resultado é um sistema regressivo, onde quem vive de salário contribui proporcionalmente mais do que quem vive de rendimentos.

Além disso, a dinâmica salarial está sempre correndo atrás da inflação. Quando os salários são reajustados para repor perdas acumuladas, essa recomposição já nasce atrasada. A partir do mês seguinte, a inflação volta a corroer o poder de compra. Ou seja, o ganho nominal não se converte em ganho real. A renda do trabalhador volta a encolher antes que ele perceba o suposto alívio fiscal. Sem aumento de poder aquisitivo, a economia desacelera, o consumo se retrai e o ciclo de desenvolvimento social fica travado.

LUCRO DO CAPITAL – Enquanto isso, o lucro do capital opera de forma diferente: ele não apenas se preserva, mas tende a se multiplicar – sobretudo quando protegido por mecanismos de isenção, incentivos e brechas legais. Se o objetivo é, de fato, reduzir desigualdades, não basta reorganizar a carga entre salários mais baixos e salários mais altos. É preciso que parte da renda que se acumula no topo, sob a forma de capital, circule de volta para a base. Assim se dá a redistribuição efetiva.

Países que conseguiram promover mobilidade social e construir estados de bem-estar robustos — como França, Alemanha, Canadá, Noruega — estruturaram seus sistemas tributários com centro de gravidade no capital, e não apenas na folha salarial. Taxam dividendos, grandes heranças, ganhos financeiros e patrimônio improdutivo. Não se trata de penalizar riqueza, mas de impedir que ela se concentre indefinidamente.

DESIGUALDADE – A medida aprovada pelo Senado é um passo. Mas é um passo limitado. Ela pode aliviar parte da pressão sobre o trabalhador comum, porém não altera a arquitetura que produz a desigualdade. Para isso, seria necessário enfrentar o debate sobre tributação do capital — um debate mais complexo, mais politizado e que mexe diretamente com os alicerces do poder econômico brasileiro.

Enquanto esse passo não é dado, seguimos apenas rearranjando pesos dentro da mesma categoria de renda, e deixando intacto o mecanismo que perpetua a desigualdade: a concentração do capital. A justiça fiscal, para ser justa de verdade, precisa ir à raiz — e não apenas à superfície.

O choque entre Haddad e Galípolo no comando da Selic

Manutenção da taxa foi recebida como uma ruptura silenciosa

Pedro do Coutto

O choque anunciado entre o governo e o Banco Central expôs, de maneira cristalina, uma disputa que vinha sendo empurrada para debaixo do tapete: o rumo da política monetária do país em um momento de desaceleração econômica e pressão social crescente.

A manutenção da taxa básica de juros em 15% pelo Banco Central, sob o comando de Gabriel Galípolo, indicado pelo próprio ministro Fernando Haddad, foi recebida como uma espécie de ruptura silenciosa dentro do governo. Lula esperava que a transição de comando no BC representasse uma mudança gradual, mas firme, no sentido de reduzir juros que considera historicamente elevados.

CONTRADIÇÃO – O gesto de manter a taxa – e ainda sinalizar preocupação com expectativas inflacionárias e incertezas fiscais – foi lido no Planalto como uma contradição direta ao projeto econômico prometido pelo governo.

A crítica pública de Haddad ao Banco Central não surgiu de improviso ou de arroubo retórico. Ela foi sustentada por dados sensíveis: com juros de 15%, o peso da dívida pública – que já corresponde a cerca de 78% do PIB – torna-se um gargalo que pressiona diretamente o orçamento federal, limita investimentos públicos e afeta o crescimento.

Trata-se de uma equação explosiva. Cada ponto percentual a mais nos juros significa bilhões adicionais em despesas para rolar a dívida. Em um país que precisa investir em infraestrutura, serviços essenciais e políticas de redução da desigualdade, os recursos drenados pelos juros se tornam um entrave político e econômico.

JUSTIFICATIVA – No entanto, o Banco Central argumenta que a taxa elevada é necessária para conter pressões inflacionárias e preservar a credibilidade monetária. Parte significativa do mercado financeiro ecoa esse argumento e sustenta que a queda dos juros sem “ancoragem fiscal” seria uma aposta arriscada, capaz de desestabilizar a moeda, elevar o dólar e corroer a confiança de investidores.

Haddad, porém, devolveu o debate ao seu componente político: segundo ele, há setores do mercado que “torcem contra o Brasil”, apostando em instabilidade para preservar privilégios associados à especulação e à renda financeira. A afirmação, reproduzida por grandes veículos de imprensa, não é apenas retórica; ela busca reposicionar o debate público sobre para quem e para que serve a política econômica.

O impasse, portanto, vai muito além da taxa Selic. Ele revela duas concepções distintas de país. De um lado, uma visão que aposta na austeridade como pilar da estabilidade, mesmo diante de seus efeitos recessivos. De outro, a convicção de que o Estado precisa recuperar sua capacidade de induzir crescimento, reduzir desigualdades e fortalecer o investimento produtivo.

OBSTÁCULO – A frustração de Lula e Haddad com o Banco Central é, nesse contexto, a frustração de um governo eleito para reativar a economia, mas que se vê travado por um modelo institucional que, desde a autonomia formal do BC, tornou-se mais resistente à orientação política do Executivo.

A bomba explodiu agora, mas o pavio estava aceso desde o início do mandato. A pergunta que se coloca daqui para frente é: haverá convergência ou aprofundamento da crise? Se o governo não conseguir alinhar discurso fiscal, reconstruir confiança e propor uma trajetória crível de responsabilidade com desenvolvimento, o Banco Central continuará se sustentando no argumento da prevenção inflacionária.

Mas se a economia permanecer estagnada, o debate sobre juros deixará de ser técnico para se tornar, de forma inescapável, social. E aí, como a história brasileira já demonstrou, nenhuma autoridade monetária permanece imune ao país real.

A decisão do Banco Central e a urgência de frear as finanças do crime organizado

Novas normas obrigam encerramento de contas irregulares

Pedro do Coutto

Por muito tempo, o sistema financeiro brasileiro conviveu com uma contradição silenciosa: ao mesmo tempo em que avançava em modernização, digitalização e inclusão bancária por meio das fintechs, deixava brechas profundas que permitiam o uso de contas sem titular definido — as chamadas contas bolsão.

Essas estruturas, usadas para gerenciar grandes volumes de recursos sem vínculo transparente com pessoas físicas ou jurídicas, tornaram-se terreno fértil para a lavagem de dinheiro em larga escala. A reportagem de Thais Barcelos e Bruna Lessa, publicada em O Globo, mostrou que essas contas foram amplamente utilizadas por facções criminosas, especialmente em São Paulo, para movimentar valores de origem ilícita de forma discreta e eficiente, passando abaixo dos radares tradicionais de fiscalização financeira.

DONOS INDEFINIDOS – É difícil não se surpreender: como um sistema bancário que, nos últimos anos, se tornou referência mundial em pagamentos instantâneos e verificação digital permitiu a existência de contas sem dono definido? A resposta está na intersecção entre a inovação acelerada e a insuficiência regulatória. As fintechs, ao democratizarem o acesso ao sistema financeiro, criaram modelos mais flexíveis e rápidos — o que é positivo para o consumidor —, mas também abriram brechas para operações opacas.

Não se trata de acusar o setor como um todo, mas de reconhecer que a ausência de normas claras, unificada à sofisticação do crime organizado, resultou no que especialistas em segurança financeira chamam de “zona cinzenta operacional”: um espaço onde o Estado enxerga pouco, o banco controla parcialmente e o crime se organiza sistematicamente.

CONTAS BOLSÃO – A nova resolução do Banco Central, que acaba com as contas bolsão e reforça a exigência de identificação dos titulares, é um passo importante — ainda que tardio. Não basta fechar contas: é preciso criar mecanismos permanentes de monitoramento, integração entre órgãos de controle e responsabilização das instituições que, por omissão ou negligência, contribuam para alimentar estruturas paralelas de circulação financeira.

A experiência internacional mostra que o combate à lavagem de dinheiro só é eficiente quando há coordenação entre reguladores, agências de inteligência financeira e bancos — como ocorre nos modelos do Reino Unido, da União Europeia e das redes cooperativas coordenadas pelo Financial Action Task Force (FATF).

Mas é importante ir além da dimensão técnica. O que está em jogo não é apenas impedir transações ilegais: é impedir que o crime organizado se consolide como um poder econômico capaz de moldar territórios, cooptar jovens e se infiltrar no Estado.

INFLUÊNCIA – O dinheiro ilícito não circula sozinho; ele compra influência, votos, armas, proteção e silêncio. Ao fechar uma brecha financeira, o Banco Central não apenas aperta o cerco contábil — ele restringe a capacidade de expansão de uma estrutura que disputa, na prática, o monopólio da autoridade em certas regiões do país.

A decisão chega tarde, mas chega em um momento crucial: quando a presença do crime organizado no tecido social brasileiro deixou de ser um problema de segurança pública isolado e se tornou um desafio institucional. Agora, o que se espera é continuidade, fiscalização séria e coragem política — porque, no combate ao poder econômico do crime, a pior resposta é a que chega apenas pela metade.

No Rio, a criminalidade causa um sentimento coletivo de medo e exaustão

Rio de Janeiro: Uma cidade que vive entre a rotina e a guerra não-declarada

É preciso discutir o peso real da dívida pública, mas o Brasil insiste em ignorar

Charge reproduzida do Arquivo do Google

Pedro do Coutto

Na entrevista concedida  na última sexta-feira à jornalista Natuza Nery na GloboNews, a economista Zeina Latif chamou atenção para um ponto que raramente é compreendido de forma clara pelo público: o tamanho do endividamento brasileiro.

Disse que a dívida bruta do país alcança cerca de 78% do Produto Interno Bruto, o que é tecnicamente correto, mas percentuais, quando não traduzidos em números absolutos, acabam criando uma discussão abstrata, distante da realidade concreta.

DÍVIDA BRUTA – Para que essa proporção seja compreendida, é necessário atravessar o cálculo: o PIB brasileiro está hoje em torno de R$ 10 trilhões; portanto, a dívida bruta se aproxima de R$ 7,8 trilhões. É um montante que não se paga da noite para o dia, tampouco sem uma estratégia de crescimento consistente. Quanto maior a dívida, maior o peso dos juros; quanto mais se gasta com juros, menos sobra para investimento em áreas essenciais como infraestrutura, saúde, educação e desenvolvimento produtivo.

É nesse ponto que entra a política monetária. O Banco Central, agora sob a presidência de Gabriel Galípolo, mantém a taxa de juros em patamar elevado para garantir atratividade dos títulos públicos, controlar expectativas de inflação e assegurar que o governo consiga rolar sua dívida. Juros altos, porém, têm um custo social.

Encarecem o crédito, inibem o investimento produtivo e limitam a capacidade de expansão do setor privado. A economia real — aquela que pesa no bolso do trabalhador, no preço do alimento, no financiamento da casa, na pequena empresa que decide contratar ou não — sente esse impacto de forma direta.

TENSÃO POLÍTICA – É por isso que o tema dos juros volta e meia gera tensão política: o governo Lula, que criticou duramente Roberto Campos Neto por manter taxas elevadas, agora vê que a troca de comando não significou automaticamente uma mudança de orientação. Há aí um desconforto compreensível, porque a política monetária segue uma lógica que não se move no ritmo das expectativas políticas.

Ainda assim, há sinais de dinamismo na economia. O desemprego caiu para 5,6%, segundo o IBGE, o menor índice em anos, representando cerca de 6 milhões de pessoas sem trabalho — número ainda alto, mas muito inferior aos quase 14% registrados durante a pandemia.

Além disso, o rendimento médio subiu para cerca de R$ 3.500, o maior da série histórica desde 2012, indicando que parte das famílias voltou a ter algum fôlego no consumo. Isso não significa prosperidade plena, mas indica um país que respira, que se reorganiza, que tenta retomar seu ritmo.

DIMENSÃO REAL – O ponto central, no entanto, permanece: indicadores percentuais, sozinhos, não revelam a dimensão real dos problemas ou avanços. Como dizia Roberto Campos, números só ganham sentido quando traduzidos em valores absolutos. E essa tradução é indispensável para que a sociedade compreenda para onde o país está indo e quais escolhas serão necessárias.

O Brasil, portanto, vive um paradoxo: ao mesmo tempo em que melhora indicadores sociais importantes, carrega uma âncora fiscal pesada e difícil de administrar. Não é possível sustentar indefinidamente juros elevados e dívida crescente sem comprometer o futuro.

Também não é possível resolver o problema com ajustes bruscos que destruam empregos e renda. O caminho exige crescimento sustentado, produtividade, reforma tributária eficiente e, sobretudo, planejamento de longo prazo — algo que ultrapassa governos, ciclos eleitorais e interesses momentâneos. A questão que se impõe, então, é simples, ainda que difícil: queremos continuar discutindo percentuais ou finalmente encarar o tamanho real da conta?

Na engrenagem invisível do crime, a propina sustenta o poder do Comando Vermelho

O crime sobrevive ao se infiltrar nas brechas do poder

Pedro do Coutto

A recente reportagem de O Globo sobre o Comando Vermelho (CV) lança luz sobre um aspecto pouco discutido, porém decisivo, da atuação da facção: a profissionalização da corrupção. Segundo as investigações, dentro da estrutura da organização criminosa há até um “especialista em propinas” — alguém cuja função é administrar pagamentos a agentes públicos e negociar vantagens que mantenham o império do tráfico funcionando com mínima interferência do Estado.

Essa revelação, mais do que um detalhe, expõe a essência do crime organizado no Brasil: ele não sobrevive apenas à base da violência, mas sobretudo pela capacidade de corromper e se infiltrar nas brechas do poder.

ALIANÇA – O Comando Vermelho, nascido nas prisões cariocas durante a ditadura, evoluiu de uma aliança de detentos para uma máquina empresarial do crime, expandindo-se por diversos estados e até alcançando conexões internacionais.

O que antes era um grupo armado, hoje é uma rede que movimenta bilhões e controla territórios com a mesma eficiência de uma corporação. O tráfico de drogas e de armas continua sendo a espinha dorsal, mas o diferencial contemporâneo é a capacidade de operar financeiramente — lavar dinheiro, investir em empresas de fachada e comprar silêncio.

É a economia paralela do crime, sustentada por um mercado de propinas que vai desde o policial de base até setores mais sofisticados da máquina pública. O caso revelado no Complexo da Penha, onde um integrante da facção atua exclusivamente como articulador de propinas, é o retrato dessa engrenagem invisível. Ele não dispara armas, não negocia drogas — negocia impunidade.

FERRAMENTA ESTRATÉGICA – Essa função demonstra que a corrupção deixou de ser uma consequência eventual e se tornou uma ferramenta estratégica. A propina garante o fluxo de informações, o alívio em fiscalizações, a liberdade de circulação de drogas e armas. Em outras palavras, é o óleo que faz girar a máquina do crime.

O problema é que esse sistema corrompe não apenas as instituições, mas a própria ideia de Estado. Quando o crime consegue comprar tolerância ou inação, o poder público deixa de ser a instância legítima do território. Nas comunidades dominadas, o Comando Vermelho dita regras, impõe horários, regula conflitos e até presta “serviços” sociais — papel que deveria ser do Estado. O dinheiro da propina, nesse contexto, não é apenas um suborno: é uma forma de poder.

ESQUEMA – As investigações recentes mostram o tamanho da estrutura financeira envolvida. Em 2025, a polícia descobriu um esquema de lavagem de dinheiro do CV que movimentou cerca de R$ 6 bilhões em um ano, com notas mofadas e marcadas pelo cheiro de drogas.

Em outro caso, planilhas apreendidas indicavam um caixa de R$ 13,8 milhões em apenas um mês, usado para custear advogados, armas e operações. Tudo isso revela um modelo de negócio altamente sofisticado, que depende tanto da violência quanto da capacidade de corromper.

O Estado, por sua vez, continua refém de uma lógica reativa: operações policiais grandiosas, confrontos em favelas, prisões pontuais — sem atacar o núcleo do problema, que é o dinheiro. Enquanto a repressão se concentra no varejo do tráfico, a elite do crime aperfeiçoa seus mecanismos de lavagem e influência.

FRONTEIRA – O enfrentamento eficaz exigiria outro tipo de estratégia: investigação financeira, rastreamento de fluxos, transparência institucional e controle rigoroso sobre servidores e empresas que interagem com o poder público. O que está em jogo vai além da segurança. É uma disputa pelo controle simbólico e prático do Estado. A propina, nesse contexto, é o instrumento que dilui a fronteira entre legalidade e ilegalidade. Cada agente comprado, cada licitação desviada, cada olhar desviado diante de um crime alimenta essa fronteira cinzenta onde o Comando Vermelho prospera.

A reportagem do Globo não apenas revela um crime — revela um sistema. E enquanto o país continuar tratando a corrupção como uma anomalia, e não como parte essencial da engrenagem que sustenta o poder paralelo, continuará condenado a enxugar gelo. O verdadeiro combate ao crime organizado não se faz apenas com fuzis ou helicópteros, mas com integridade, investigação e vontade política. Porque o poder do Comando Vermelho não está apenas nas armas — está, sobretudo, no bolso de quem se vende para mantê-lo.

A urgência que chegou tarde: o desafio de enfrentar o crime organizado no Brasil

A cidade do Rio de Janeiro torna-se refém do abandono e da disputa armada

Trump arma ofensiva diplomática na Ásia e tenta equilibrar poder entre China e América Latina

Trump tem em sua agenda um encontro decisivo com Xi Jinping

Pedro do Coutto

Após o encontro cordial com o presidente Lula da Silva na Malásia, Donald Trump segue ampliando sua estratégia global de reaproximação comercial. O presidente norte-americano tem agora em sua agenda um encontro decisivo com Xi Jinping, na China, onde pretende firmar acordos que possam redefinir a balança de poder econômico entre Washington e Pequim.

Segundo fontes diplomáticas, Trump oferecerá isenções tarifárias a países do Sudeste Asiático — entre eles Tailândia, Vietnã, Camboja e a própria Malásia — numa clara tentativa de reforçar a presença dos Estados Unidos na região e conter a influência crescente da China sobre seus vizinhos.

“NEGOCIADOR GLOBAL” – O movimento é típico do estilo político de Trump: pragmático, transacional e fortemente voltado à imagem de “negociador global”. A visita à Ásia acontece em meio a uma série de reviravoltas na política comercial americana, que nos últimos meses impôs e agora revisa tarifas com objetivos de pressão diplomática.

A nova rodada de viagens presidenciais tem um duplo propósito — reposicionar os Estados Unidos como centro das cadeias produtivas globais e reconstruir pontes com parceiros estratégicos afetados por medidas protecionistas anteriores.

A China, por sua vez, teria aceitado um acordo parcial envolvendo o mercado da soja, um dos pontos de maior atrito entre as duas potências. Para Trump, a concessão chinesa representa uma vitória simbólica: ela sinaliza que Pequim está disposta a flexibilizar barreiras em troca de estabilidade e previsibilidade no comércio bilateral. Esse gesto também tem impacto direto sobre o Brasil, já que o país é um dos maiores exportadores de soja para o mercado chinês e pode ver o equilíbrio global desse setor se modificar.

APROXIMAÇÕES – A ofensiva asiática de Trump é parte de um jogo mais amplo de aproximações simultâneas. Ao estender a mão a Lula da Silva e acenar positivamente à China, o presidente norte-americano tenta redesenhar um mapa de alianças comerciais que combine política de resultados com pragmatismo geoeconômico.

Em um contexto global de tensões e disputas, Trump aposta em sua capacidade de negociar com todos os lados, mesmo com líderes ideologicamente opostos, para consolidar um novo eixo de influência baseado em vantagens econômicas e parcerias seletivas.

OPORTUNIDADE – Para o Brasil, esse novo tabuleiro representa tanto uma oportunidade quanto um desafio. Se Lula souber aproveitar o canal de diálogo aberto na Malásia, poderá garantir espaço para o país em futuras negociações multilaterais e até equilibrar sua posição entre Washington e Pequim.

O fato é que Trump, em seu retorno ao centro do poder mundial, parece disposto a usar a diplomacia econômica como principal arma para reposicionar os Estados Unidos. E cada gesto seu, da América Latina à Ásia, tem o potencial de redefinir a dinâmica comercial global nas próximas décadas.

Lula e Trump abrem nova frente diplomática para encerrar guerra tarifária

Bolsa Família dos prefeitos corruptos: transforma a miséria em deboche político

Prefeitos que recebiam Bolsa Família tinham carros, terras e gados

Pedro do Coutto

Há momentos em que a política brasileira atinge níveis tão baixos que nem a indignação parece dar conta. O caso revelado por O Globo, em reportagem do jornalista Bernardo Mello, é um desses episódios que expõem a degradação moral de parte do poder público. Prefeitos donos de terras, gado e carros de luxo foram flagrados como beneficiários do Bolsa Família, um programa criado para sustentar quem vive à beira da sobrevivência.

Trata-se de um escárnio, um golpe não apenas contra o erário, mas contra a própria ideia de empatia social. É o retrato fiel de um país que permite que a esperteza ocupe o lugar da ética, e o privilégio se disfarce de necessidade.

PACTO DE SOLIDARIEDADE – O Bolsa Família, com todos os seus méritos e limitações, sempre foi um pacto de solidariedade: transferir um pouco da riqueza coletiva para os que não têm o suficiente para comer. O que se vê agora é a distorção desse pacto, transformado em um balcão de oportunismo.

Como pode um prefeito, que administra recursos públicos, dono de fazendas, veículos e rebanhos, constar no cadastro de um programa voltado à extrema pobreza? A resposta é simples e vergonhosa: porque a fiscalização é frouxa, e o senso de decência, em alguns, é inexistente. É o retrato de uma elite local acostumada a confundir o público com o privado, a usar o poder para benefício próprio, enquanto posa de protetora dos pobres nas campanhas eleitorais.

O episódio não é um caso isolado. É a ponta de um iceberg de descontrole e desfaçatez. Há anos, especialistas e auditores alertam para a fragilidade dos cadastros e a falta de integração entre os sistemas públicos. Quem tem carro, gado e terra deveria ser automaticamente excluído do programa, mas o cruzamento de dados é precário e a verificação, ineficiente.

INFILTRADOS – O resultado é que prefeitos, vereadores e servidores públicos com patrimônio expressivo acabam se infiltrando entre os mais pobres — e isso não ocorre por acaso, mas por conveniência. Em muitos municípios pequenos, o Bolsa Família ainda serve como moeda de troca eleitoral, um instrumento de controle social usado por quem domina as máquinas locais.

O que choca não é apenas o roubo material — afinal, para quem tem fazenda é troco de padaria —, mas o roubo simbólico. Quando um representante público toma o lugar de uma mãe solo que precisa escolher entre o gás e o leite, ele comete um crime moral: o de zombar da pobreza.

É uma agressão direta à dignidade de milhões de famílias que dependem desse benefício para sobreviver. É o que o texto de Bernardo Mello chama de “assalto contra a consciência coletiva”, e é exatamente isso: uma invasão silenciosa da ética por parte dos que deveriam defendê-la.

OBRIGAÇÃO – O governo federal, por sua vez, tem obrigação de reagir com firmeza. A mera exclusão desses nomes do cadastro é insuficiente. É preciso punir exemplarmente, devolver os valores indevidos, expor os responsáveis e abrir processos administrativos e criminais.

Porque o problema não é técnico — é moral. E moral não se corrige com relatórios, mas com consequência. Enquanto os corruptos de sempre continuarem a usar a pobreza como disfarce e o poder como escudo, o Brasil seguirá sendo o país onde a esperteza é premiada e a honestidade, punida pela omissão.

FRONTEIRA – No fundo, esse escândalo não é sobre dinheiro — é sobre valores. É sobre um país que parece incapaz de reconhecer a fronteira entre necessidade e ganância. Prefeitos que recebem Bolsa Família não estão apenas cometendo fraude: estão rindo na cara do povo. Rindo da mãe que levanta às cinco para trabalhar, do pai que enfrenta fila em posto de saúde, do estudante que depende do auxílio para não abandonar a escola. Rindo da própria democracia que os elegeu.

O Bolsa Família dos corruptos não é apenas uma denúncia jornalística — é o retrato de um Brasil que insiste em se trair. Um país em que o poder virou licença para o abuso, e a pobreza, vitrine de conveniência. Enquanto o Estado não punir o cinismo travestido de carência, continuaremos a viver sob o domínio daqueles que fazem da miséria um palco — e do assistencialismo, um espetáculo grotesco de impunidade.

O caso Lula e a polêmica sobre os “traficantes vítimas dos usuários”

O silêncio de Fux e o ruído no Supremo: por que a mudança de turma exige explicação

Mudança reacende o debate sobre o equilíbrio no STF

Pedro do Coutto

A ida do ministro Luiz Fux da Primeira para a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) acendeu um debate que ultrapassa a burocracia interna da Corte. Trata-se de uma decisão que, pela falta de explicação convincente, gerou desconforto entre ministros e despertou desconfiança na opinião pública.

O STF não é um colégio onde se troca de turma por afinidade ou conveniência; é a instância máxima do Judiciário brasileiro, cuja credibilidade depende da transparência de seus atos. Por isso, Fux deve explicações não apenas a seus colegas — Flávio Dino, Cristiano Zanin, Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes —, mas à sociedade, que tem o direito de compreender as motivações de uma mudança com impactos políticos e jurídicos relevantes.

MAL-ESTAR – Segundo reportagem de O Globo, a movimentação de Fux gerou mal-estar dentro do tribunal, especialmente porque ocorre num momento em que o STF se prepara para julgar recursos do ex-presidente Jair Bolsonaro. A dúvida agora é em qual turma o processo será analisado: na Primeira, de onde Fux saiu, ou na Segunda, para onde ele foi. Essa definição importa.

Na Segunda Turma, o ministro se juntará a André Mendonça e Kassio Nunes Marques — ambos indicados por Bolsonaro —, o que pode alterar o equilíbrio de forças e até provocar um eventual empate de três a três, cenário que abriria margem para recursos protelatórios. Na Primeira Turma, a composição seria diferente, e a probabilidade de impasse, menor. O ministro Edson Fachin, presidente da Segunda Turma, teria o voto de desempate, mas a simples possibilidade de rearranjo em um julgamento dessa magnitude alimenta interpretações sobre motivação política.

É inegável que ministros têm direito de solicitar transferência de colegiado, mas a questão central é o momento e o contexto. Quando essa decisão ocorre às vésperas de um julgamento de alto impacto, a ausência de explicação pública dá espaço a suspeitas — e suspeitas corroem a confiança institucional. O STF tem sido alvo constante de ataques e desinformação, e cada movimento interno precisa, portanto, ser tratado com cuidado redobrado.

OBRIGAÇÃO DEMOCRÁTICA – A transparência, nesse caso, não é um gesto opcional, mas uma obrigação democrática. Explicar por que um ministro muda de turma, quais critérios regem essa decisão e se há ou não impactos sobre casos específicos é fundamental para preservar a integridade da Corte.

A jurisprudência brasileira se sustenta sobre a ideia de imparcialidade e estabilidade das decisões. Quando um ministro se transfere e o público não entende o motivo, instala-se a dúvida: estaria buscando um ambiente mais favorável para si, para terceiros ou para determinados processos?

O simples fato de essa pergunta circular já é um problema em si. A Suprema Corte, mais do que qualquer outro poder, precisa blindar-se de percepções de conveniência. A credibilidade do Judiciário não depende apenas das decisões que toma, mas da forma como comunica e fundamenta cada uma delas.

MOVIMENTAÇÃO INESPERADA – Luiz Fux é um ministro com trajetória sólida, reconhecido por sua atuação técnica e pela defesa da segurança jurídica. Justamente por isso, sua movimentação inesperada exige uma explicação compatível com o peso de sua biografia e com a responsabilidade institucional que carrega.

A sociedade brasileira vive um momento de tensão e descrença nas instituições, e o Supremo precisa reafirmar, por gestos e palavras, que suas decisões não se curvam a pressões políticas, internas ou externas. A confiança pública é o ativo mais valioso de uma corte constitucional — e, uma vez abalada, é difícil de reconstruir.

RUÍDO POLÍTICO – A mudança de Fux pode ter razões legítimas, administrativas ou pessoais, mas sem transparência elas se perdem no ruído político. Cabe ao ministro e ao próprio STF dissipar dúvidas e reafirmar o princípio de que, no Estado de Direito, até mesmo os movimentos internos da Suprema Corte devem ser claros, motivados e compreensíveis. O silêncio, neste caso, não é prudência — é omissão. E omissão, em tempos de desconfiança generalizada, tem custo institucional alto.

Em última instância, o que está em jogo não é apenas a composição de uma turma, mas a confiança do cidadão de que os julgamentos mais sensíveis do país são feitos por juízes movidos pela lei, e não por conveniências.

Luiz Fux, ao mudar de turma, acendeu uma luz sobre um ponto que o STF não pode mais ignorar: transparência e coerência não são virtudes secundárias — são pilares da Justiça e da democracia.

A manobra silenciosa de Luiz Fux e o intrincado tabuleiro do Supremo

O gesto de Fux e o eco político de uma mudança no Supremo

Entre tarifas e petróleo: o desafio diplomático de Lula diante de Trump

O ouro da corrupção é ameaça global, com a erosão da confiança pública

Proteger o que é público é um compromisso de todos

Pedro do Coutto

Vivemos um tempo em que a corrupção deixou de ser um fenômeno restrito a determinados países ou governos e se transformou em uma ameaça global, infiltrando-se tanto em administrações públicas quanto em instituições de prestígio.

O episódio narrado sobre o roubo de joias no Museu do Louvre, em Paris, serve como uma poderosa metáfora desse cenário. O fato de ladrões terem conseguido penetrar em um dos espaços mais vigiados e simbólicos do mundo — supostamente com ajuda interna — revela que nenhuma estrutura, por mais sólida que pareça, está imune quando a ética e a integridade se fragilizam por dentro.

FERRUGEM SILENCIOSA – A corrupção é isso: um roubo que não vem de fora, mas que nasce no interior das próprias instituições, corroendo-as como ferrugem silenciosa. No Brasil, a mesma lógica se aplica a órgãos públicos que deveriam ser sinônimo de confiança e proteção social, como o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Recentemente, investigações da Controladoria-Geral da União e da Polícia Federal revelaram um esquema bilionário de fraudes, com descontos indevidos em benefícios de aposentados e pensionistas. Estima-se que cerca de R$ 6,3 bilhões tenham sido desviados entre 2019 e 2024, em um esquema que envolvia associações e sindicatos falsamente conveniados.

Beneficiários, muitos deles idosos e vulneráveis, descobriram que parte de seus rendimentos havia sido retida sem autorização. O caso escancara um problema estrutural: o enfraquecimento dos mecanismos de controle interno e a complacência com práticas ilícitas que se tornaram quase rotina na administração pública.

CONFIANÇA SOCIAL – A corrupção, quando se alastra, não destrói apenas os cofres, mas a confiança social. Ela mina a credibilidade do Estado e fragiliza o pacto democrático. Quando um aposentado descobre que foi lesado por quem deveria protegê-lo, o dano é mais profundo do que o financeiro: é simbólico, é moral.

A sensação de impotência e de injustiça amplia o distanciamento entre o cidadão e o poder público, alimentando o descrédito nas instituições e abrindo espaço para discursos populistas que exploram o ressentimento social. Esse ciclo é perigoso porque transforma o cansaço moral em combustível político.

A história mostra que, onde há fragilidade institucional, a corrupção se instala com mais facilidade. O Brasil, herdeiro de uma cultura patrimonialista, ainda mistura o público e o privado em sua lógica de funcionamento. O velho hábito do “toma lá, dá cá” continua presente nas relações entre o Executivo e o Congresso, e os escândalos se repetem como se fossem capítulos de uma série sem fim.

PREJUÍZOS E DÉFICITS – A crise nos Correios, que vem acumulando prejuízos bilionários, e os déficits em fundos de pensão, como o Postalis, são sintomas de um mesmo mal: a captura do Estado por interesses particulares. Soma-se a isso a queda nas receitas, o avanço da tecnologia que reduziu a demanda por serviços tradicionais e a má gestão de recursos aplicados de forma temerária na bolsa de valores. O resultado é um quadro de instabilidade que atinge não apenas o erário, mas também a confiança do trabalhador brasileiro.

Enquanto isso, no cenário internacional, o mundo também enfrenta suas próprias crises de moralidade e poder. O conflito em Gaza, reacendido por ataques israelenses que deixaram dezenas de mortos, mostra que até mesmo os compromissos de trégua podem ser rompidos por interesses políticos.

ESTRATÉGIA –  O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, pressionado internamente, parece prolongar o conflito como estratégia de sobrevivência política. Do outro lado, os Estados Unidos observam com cautela, enquanto Donald Trump tenta equilibrar seu papel de mediador com a necessidade de mostrar força.

A diplomacia se mistura ao cálculo eleitoral, e a paz vira um ativo político. Nesse tabuleiro global, o roubo de joias em Paris, o desvio de verbas no INSS e as bombas lançadas em Gaza parecem eventos distintos, mas partilham um mesmo denominador comum: a degradação da ética pública e da responsabilidade moral no exercício do poder.

É inevitável, portanto, reconhecer que a corrupção, seja em forma de fraude administrativa ou de guerra política, nasce da mesma semente — a do egoísmo humano que transforma o bem comum em bem próprio. Combater esse mal exige mais do que punições exemplares: requer uma mudança cultural, uma educação ética que valorize o serviço público como vocação, não como oportunidade.

VOZ E MEIOS – O fortalecimento das instituições de controle, a transparência ativa e o empoderamento da sociedade civil são caminhos indispensáveis. O cidadão precisa voltar a ter voz e meios de fiscalizar o Estado. É inaceitável que alguém trabalhe a vida inteira e veja parte de sua aposentadoria ser desviada por esquemas obscuros, enquanto os responsáveis permanecem impunes.

O Brasil tem leis modernas, como a Lei Anticorrupção, mas ainda peca na aplicação e na fiscalização. É preciso que a justiça funcione sem seletividade, que os agentes públicos e privados envolvidos em desvios sejam punidos com rigor e que as estruturas de poder deixem de proteger seus próprios integrantes.

ZELO PELO COLETIVO – Só assim será possível reconstruir o elo de confiança entre governo e sociedade. A corrupção, no fundo, é o espelho da nossa incapacidade de zelar pelo coletivo. Quando um museu perde suas joias, um aposentado perde seu benefício e um país perde sua integridade, o que se rouba não é apenas o ouro ou o dinheiro — é a dignidade de um povo.

O desafio que se impõe ao Brasil, e ao mundo, é o de reerguer as muralhas da confiança. Proteger o que é público não é apenas uma tarefa do Estado, mas um compromisso de todos. A honestidade precisa voltar a ser um valor inegociável, e não uma exceção admirável. É tempo de compreender que o verdadeiro tesouro de uma nação não está nas joias do Louvre, nem nos cofres do INSS, mas na solidez moral de suas instituições e na ética de seus cidadãos.

Entre a ficção e a fatura: o orçamento de 2026 e o dilema do governo Lula

Charge do Clayton (Arquivo do Google)

Pedro do Coutto

O governo Lula entra em um dos momentos mais delicados de sua gestão: a elaboração do orçamento para 2026, ano eleitoral e, portanto, decisivo tanto do ponto de vista político quanto econômico.

No papel, trata-se de um documento técnico, racional, equilibrado; na prática, é um tabuleiro onde se cruzam cálculos eleitorais, promessas sociais e a dura realidade fiscal de um país que convive há décadas com déficits estruturais e um endividamento crescente. O desafio de Lula e de sua equipe econômica é produzir uma peça que agrade ao eleitor e, ao mesmo tempo, mantenha a confiança dos mercados — duas forças que raramente se conciliam.

TRAÇOS DE FICÇÃO – Na essência, o orçamento público brasileiro sempre carregou traços de ficção. Não por má-fé, mas porque a distância entre a previsão e a execução é enorme. As receitas projetadas frequentemente não se confirmam, e as despesas, que deveriam ser controladas, acabam se multiplicando ao sabor das pressões políticas.

Além disso, boa parte do orçamento é engessada: previdência, folha de pagamento, benefícios constitucionais e dívidas judiciais absorvem quase todo o espaço de manobra. O que sobra, os chamados gastos discricionários, é pouco mais do que uma margem simbólica — e, em ano eleitoral, essa margem é disputada como ouro.

A peça orçamentária enviada pelo governo ao Congresso prevê um superávit primário de R$ 34,5 bilhões, o equivalente a 0,25% do PIB, segundo dados da Reuters. À primeira vista, é um número positivo, uma sinalização de compromisso com a responsabilidade fiscal.

EQUILÍBRIO FRÁGIL – Mas basta um olhar mais atento para perceber que o equilíbrio é frágil: o cálculo exclui quase R$ 58 bilhões em despesas obrigatórias, como precatórios, e se essas obrigações forem incluídas, o resultado se transforma em déficit. É um equilíbrio que depende de premissas otimistas e de um ambiente econômico estável — algo pouco garantido no Brasil contemporâneo.

Ao mesmo tempo, paira sobre o orçamento um elemento que raramente é debatido com a devida profundidade: o peso dos juros da dívida pública. O Banco Central estima que o estoque da dívida brasileira já se aproxima dos R$ 9 trilhões, superando de longe o valor total do orçamento.

O pagamento de juros, que não aparece nas contas primárias, consome parcela crescente das receitas e transforma a meta fiscal em uma ilusão parcial. De acordo com o FMI, o Brasil precisa de um ajuste fiscal de cerca de 3% do PIB para estabilizar a trajetória da dívida — algo politicamente árduo, especialmente quando o horizonte é eleitoral.

ROTEIRO CONHECIDO – A tensão é clara: de um lado, a pressão popular por mais investimentos, programas sociais, habitação, infraestrutura e aumento real do salário mínimo; de outro, o receio de que uma guinada populista comprometa a credibilidade do governo junto aos agentes financeiros. O risco é que, na tentativa de equilibrar as duas pontas, o governo acabe reproduzindo um roteiro conhecido: promessas generosas, cortes improvisados e um déficit que se disfarça em números de conveniência.

O próprio conceito de “orçamento” no Brasil tornou-se algo elástico. É um instrumento que orienta as ações do Estado, mas que depende de variáveis políticas e econômicas imprevisíveis. Como já observou o economista Marcos Mendes, ex-consultor do Senado, “o orçamento brasileiro é uma ficção útil: serve para planejar, mas raramente para cumprir”. Essa elasticidade, porém, cobra seu preço. Quanto mais o país posterga a consolidação fiscal, mais caro fica o serviço da dívida, e menos sobra para políticas públicas reais.

DILEMA – Em 2026, o governo enfrentará um dilema inevitável: ou mantém o discurso da responsabilidade fiscal, com superávits modestos e contenção de gastos, correndo o risco de desagradar a base social que o elegeu; ou cede à tentação de ampliar benefícios e investimentos, apostando que o crescimento compense o desequilíbrio. É uma escolha entre o pragmatismo e a popularidade — e ambos custam caro.

No fim das contas, o orçamento é mais do que uma planilha: é um retrato das prioridades políticas de um governo e um termômetro da confiança que ele inspira. Se o texto orçamentário para 2026 conseguir conciliar prudência e sensibilidade social, Lula terá conseguido o raro feito de unir realismo e esperança.

Mas se prevalecer a lógica da ficção — onde as contas fecham apenas na teoria — o país corre o risco de repetir um velho enredo: prometer mais do que pode cumprir e pagar o preço, com juros e desconfiança, nos anos seguintes.