J.R. Guzzo
Estadão
É raro no Brasil de hoje que o Supremo Tribunal Federal, quando decide fazer alguma coisa, perca a oportunidade de fazer o pior possível. É o que está acontecendo agora, mais uma vez, com o suposto debate sobre a extensão do “foro privilegiado” – a deformidade legal que dá direitos e obrigações desiguais aos cidadãos brasileiros.
O STF, para infortúnio geral, resolveu se meter também nisso, e aí não pode dar outra: o que já é ruim tem tudo para ficar péssimo. Trata-se de um debate suposto porque não existe, no mundo das realidades, debate nenhum.
NOVO EMBUSTE – É mais um embuste dos ministros para esconder com latinório e português incompreensível a malícia fundamental daquilo que de fato querem impor ao país: um sistema judicial em que tudo que os ministros quiserem julgar pode ser julgado por eles mesmos, sem os inconvenientes e as incertezas da justiça comum.
Penal, civil, extra-terrestre – se os ministros mudarem a lei, mais uma vez, em seu próprio benefício, tudo pode ser classificado como “foro especial” e ser entregue ao julgamento do Supremo. O placar da votação já está em 7 a 0 para a ampliação dos poderes do STF.
É disso, e não de outra coisa, que se trata. O Supremo já deu a si próprio o direito de mandar em tudo – da legalização da maconha para “uso recreativo” à proibição de gibis de palavras cruzadas para os presos que o tribunal define como “golpistas”. Agora decidiu mandar em mais do que tudo.
TOTAL DISPARATE – O “foro privilegiado” é um disparate. Por conta dessa invenção, os gatos gordos da República não precisam responder pelo que fazem à justiça comum – têm direito a serem julgados diretamente no STF, se os seus casos preencherem determinadas condições.
É óbvio que eles foram massageando a lei de forma a incluir nisso o máximo possível de gatos gordos. Hoje, acredite se quiser, há 55.000 pessoas com direito a “foro especial” – o que deveria ser uma situação excepcional virou uma feira livre.
É impossível, obviamente, que se possa fazer justiça num sistema assim. Mas o STF acha que ainda não está bom. Quer que o privilégio do foro se estenda a virtualmente qualquer coisa que o privilegiado fizer, a qualquer tempo e em qualquer circunstância.
MUITA ENCENAÇÃO – Há toda uma encenação, entre os que se consideram “juristas” e coisas parecidas, para fazer de conta que os ministros estão discutindo questões de direito ou de ciência política – ou até, para os mais descontrolados, um “aprimoramento” das instituições.
Mas não há um debate jurídico, nem o aprimoramento de coisa nenhuma. O que há na prática é a multiplicação de casos a serem julgados no STF – onde, entre outras coisas extraordinárias, as mulheres dos próprios ministros podem advogar em causas a serem julgadas pelos maridos.
É uma vantagem multiuso. Serve, de um lado, para livrar os magnatas acusados de corrupção de alguma bala perdida na justiça comum – onde ainda há juízes dispostos a aplicar a lei e condenar quem rouba.
MAIS UTILIDADE – De outro lado, serve para garantir que os inimigos políticos não tenham oportunidade de receber um julgamento imparcial nas instâncias inferiores da justiça.
Um dos ministros diz que a mudança pretendida vai aumentar a “segurança jurídica” no Brasil. Segurança do que e de quem? Há apenas seis anos atrás o mesmo Supremo aprovou um entendimento contrário ao que está sendo proposto agora.
Isso é insegurança jurídica direto na veia – a criação de uma jurisprudência em permanente mutação, de acordo com as circunstâncias, os interesses políticos dos ministros e os nomes dos envolvidos. É como o Brasil de hoje está obrigado a viver.