Deu em O Globo
A PEC das Praias, em discussão no Senado Federal, vai na contramão da legislação de países desenvolvidos, como Estados Unidos, Inglaterra, Portugal e outros, ao propor a flexibilização de construções em áreas costeiras, ainda que não trate do acesso ao mar ou areia. Hoje, a União detém 17% do valor dos terrenos e imóveis construídos numa faixa de 33 metros a partir do litoral, e recebe taxas como foro e laudêmio dos proprietários. A proposta, que prevê a transferência integral dos chamados terrenos de marinha aos atuais ocupantes, difere da postura de nações pelo mundo que optam por destacar a orla como bem público.
Defensores da PEC, relatada pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), veem potencial de desenvolvimento econômico nas regiões e de maior arrecadação para a União, que no ano passado recolheu R$ 1,1 bilhão relativos a taxas de 564 mil imóveis nessas áreas.
Já os críticos, por sua vez, argumentam que, fora do guarda-chuva da Superintendência Patrimonial da União, aumentam as possibilidades de restrição de acessos a praias, desmatamento e outros riscos ambientais.
LEI FEDERAL – Nos Estados Unidos (EUA), embora cada estado tenha autonomia para legislar, o acesso às praias é determinado por um conjunto de leis federais chamado de “Doutrina de Confiança Pública”. De acordo com esse princípio, criado em 1821, o direito de circulação às margens das águas é tão comum ao homem quanto o de respirar e de se aquecer ao sol.
Desde então, a área lateral existente entre as linhas médias das marés alta e baixa passou a ser considerada “inerentemente pública”, funcionando de maneira semelhante ao limite de 33 metros estabelecido na lei brasileira.
Consequentemente, as cidades na costa dos EUA são obrigadas a permitir o acesso da população a áreas litorâneas, além de fornecer estacionamentos e banheiros públicos em intervalos pré-determinados.
SEM EXPLORAÇÃO – Os municípios com saída para o mar não são autorizados a cobrar taxas de acesso a praias exclusivas ou valores exorbitantes de turistas. Diferente do que ocorre hoje no Brasil, proprietários não são cobrados pela ocupação ou domínio de uma propriedade na zona costeira.
Além disso, o sistema político descentralizado do país permite que os estados desenvolvam suas próprias regras, e muitos deles reforçaram as regras da “Doutrina de Confiança Pública”.
A Suprema Corte do estado de Oregon foi pioneira na aplicação da legislação em 1969, declarando todas as praias de areia seca — porção da praia abaixo da linha da maré alta — abertas ao público. Já a Flórida, onde ficam as famosas praias de Miami, seguiu o exemplo em 1974, mas a decisão da Suprema Corte do estado foi interpretada desde então como “parcialmente aplicável”.
LIBERDADE DE VAGAR – Assim como no Texas, na Carolina do Norte, no Havaí e nas Ilhas Virgens dos EUA, novas leis recentes reconhecem o direito ao uso rotineiro da praia. Já em países europeus como Reino Unido, Suécia, Noruega e Finlândia vale uma orientação que pode ser traduzida como “Liberdade de Vagar” (Freedom to Roam). Esse princípio permite o acesso público a todas as terras litorâneas para recreação, mesmo que elas sejam de propriedade privada.
Já no México, o desenvolvimento de atividades econômicas em áreas costeiras, como Cancún, é restrito a uma faixa de 20 metros de largura delimitada pelo Ministério do Meio Ambiente e Recursos Naturais. Essa área é chamada de Zona Federal Marítimo Terrestre, onde o uso particular de praias é estimulado por meio de concessões.
O ex-presidente Jair Bolsonaro, pai do senador Flávio, afirmou em algumas ocasiões seu desejo de transformar a região de Angra dos Reis, localizada na Costa Verde do Rio de Janeiro, em uma espécie de “Cancún brasileira”. As declarações foram destacadas pela mídia internacional ao repercutir a discussão sobre a PEC das Praias.
DIREITO DE NASCENÇA – Nas Bahamas, também localizadas no Caribe, as praias públicas incluem as terras abaixo da linha da maré alta. Embora o governo seja o único proprietário da costa, o direito automático de passagem à área litorânea não é tão delimitado quanto nos outros países citados.
Essa brecha na legislação é alvo de disputas judiciais e provoca uma série de conflitos no país, uma vez que o acesso às praias é visto como um direito de nascença pelos moradores e prejudica o trabalho de ambulantes.
Já em países como Itália e França, a área de praia não pode ser comprada por empresas privadas, podendo apenas ser negociadas por meio de concessões temporárias de uso particular. Após firmar um contrato com o governo, a iniciativa privada pode cobrar a entrada ou pelo uso de espreguiçadeiras e guarda-sol, entre outros serviços.
TERRENOS DE MARINHA – Os terrenos de marinha, vale frisar, não são uma invenção ou exclusividade brasileira. Em audiência pública, a coordenadora-geral do Departamento de Oceano e Gestão Costeira do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marinez Scherer, informou que a área de segurança nos terrenos de marinha em outros países costuma ser maior que a adotada no Brasil (33 metros).
Em Portugal, são 50 metros; na Suécia, de 100 a 300 metros. Já o vizinho Uruguai estabelece de 150 a 250 metros. A Argentina, de 150 metros.
REESTATIZAÇÕES – Flávia Lins de Barros, coordenadora do Laboratório de Geografia Marinha do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que a Espanha, que havia extinguido e privatizado seus terrenos de marinha, voltou atrás e agora enfrenta problemas para desapropriá-los.
A França também tem recomprado áreas costeiras privatizadas para restaurá-las. No Reino Unido, o National Trust tem iniciativa semelhante.
O motivo, além de questões de segurança nacional, são as mudanças climáticas, que têm levado a inundações, erosão costeira e invasões de ressaca e de marés de tempestade. Na semana passada, a Marinha do Brasil classificou as áreas de marinha como “pilares essenciais para a defesa da soberania nacional” e afirmou que o debate em torno da PEC das Praias é essencial para compreender o valor desses espaços.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Excelente e oportuna matéria, assinada por Rafaela Gama, Luis Felipe Azevedo e Ana Lucia Azevedo. É a chamada reportagem coletiva ou feita de patota, como se dizia antigamente. (C.N.)