Conrado Hübner Mendes
Folha
No país da “pacificação”, a jurisdição tornou-se insuportável. Vai virando transação. Essa pacificação não tem a ver com qualquer ideia de paz, mas com rendição ao mais forte. O escamoteamento retórico da violência é técnica neocolonial envernizada pela linguagem jurídica, um simulacro magistocrático para suprimir direitos. O legado de sofrimento deixado por nosso panteão de pacificadores não pode ser calculado.
O STF rejeitou a tese do marco temporal para reconhecimento de terras indígenas. Essa fraude interpretativa já é bem conhecida. O Congresso Nacional editou nova lei que ressuscitou a tese e nova ação constitucional chegou ao STF contra essa lei.
GILMAR EM AÇÃO – O ministro relator sorteado, Gilmar Mendes, sem apreciar o pedido de que a ação fosse distribuída ao ministro Fachin, relator de ações sobre o tema; sem apreciação do plenário; ignorando que o plenário do STF já invalidou a tese; e, juntando no mesmo bolo uma ação sobre mineração, agendou “comissão de conciliação” para decidir.
Quando um tribunal constitucional não aguenta o peso de aplicar a Constituição em favor do mais fraco, e monta mesa de “conciliação” entre “partes”, deixa de ser participante do constitucionalismo e entra para o clube privê do “constitunegocialismo”. Juízes constitunegocialistas não vieram ao mundo para julgar. Vieram a negócios. Negociam o público para ganhos privados.
A proposta traz à memória o quadro “Foguetinho”, do programa de Silvio Santos. “Evani, você troca um televisor colorido e um automóvel por um chifre de boi premiado?” “Siiim!”, dizia a mulher fechada na cabine, sem saber o que escolhia. O jogo da sorte induzia frustrações de consumo e deleitava apresentador e audiência.
NOVO MODELO – O STF não está adotando um novo modelo de foguetinho. Criou negociação compulsória entre violadores e violados, se é que você entende essa contradição em termos, onde apenas uma parte tem autonomia da vontade.
Você troca sua liberdade por um chokito? Seu hospital por uma paçoca? Sua escola por um amendoim? O rio onde pesca seu alimento por uma batata frita? Seu modo de vida por moradia precária na periferia? Não é assim que se começa uma conversa sobre direitos fundamentais. Mas é esse tipo de pergunta que o STF impõe a indígenas.
Direitos fundamentais servem como anteparo contra interesse público cujos meios possam violar a dignidade individual (como a tortura em busca da segurança pública). Ou contra interesse privado predatório e práticas de opressão e exclusão.
SÃO ÚTEIS – Servem para que o torturado não precise se sentar à mesa com o torturador, a criança grávida não se submeta a um “meio-termo” com seu estuprador, a pessoa negra não seja forçada a apertar a mão do racista. Para que o artista não seja obrigado a cortar a letra da canção, o jornalista a omitir fatos da reportagem, o cientista a se curvar ao negacionismo. Para que ninguém se sinta pressionado a abdicar da dignidade para sobreviver.
Se a definição do conteúdo de um direito fundamental vai para a mesa de conciliação, já não é mais direito fundamental, mas outra coisa. Temos candidatos conceituais para essa outra coisa: favor, migalha, concessão; assédio, exploração, expropriação; desfaçatez, manipulação, dominação; escambo, comércio, leilão.
No século 19, esse STF proporia conciliação entre senhores de engenho e escravos. No século 20, exigiria consenso entre Forças Armadas e famílias de mortos e desaparecidos pela delinquência militar.
NEGOCIALISMO – No século 21, oficializou câmara de conciliação e a chamou de “nova abordagem”. Tenta vender como revolução científica e institucional. Mas é só depravação autoritária.
Em vez de aperfeiçoar, renuncia a jurisdição constitucional. Transformar constitucionalismo em constitunegocialismo, direito fundamental em título de escambo, é o projeto do centrão partidário e magistocrático para o país.
Paulo Sérgio Pinheiro lembrou que Severo Gomes dizia: “Os juízes julgam de acordo com os interesses dos fazendeiros ou dos garimpeiros”. No STF conciliatório, fazendeiros estão representados.