Marcus André Melo
Folha
Ao longo dos oito anos em que venho atuando como colunista aqui na Folha critiquei análises sobre crises e ameaças à democracia bem como índices de qualidade da democracia produzidos pelo VDEM e Freedom House. É reconfortante saber que estas instituições reconheceram as insuficiências apontadas por muitos analistas.
A ideia de uma “recessão democrática” no mundo foi em parte produto da ascensão de Trump em 2016. Sua reeleição, em 2024, tem efeito similar, magnificando simbolicamente a narrativa de uma crise global da democracia.
EXEMPLO DE MENEM – Já houve vieses no sentido contrário: quando a Argentina saía do regime militar e Menem, que havia sido encarcerado pelo regime, assumiu o poder, não se detectou nenhum retrocesso nos índices em seu mandato; Menem, no entanto, aumentou o número de juízes da Suprema Corte de 5 para 9, garantindo de imediato maioria na casa. Conscientes ou não, os analistas “torciam” para que a transição desse certo.
Em Oregon, manifestante segura placa com a frase Trump Vence em comício de apoio ao republicano em 6 de janeiro de 2021, dia em que apoiadores do republicano invadiram e atacaram o Capitólio, em Washington – Terray Sylvester – 6.jan.21/Reuters
Há pelo menos três equívocos nestes debates. O primeiro é o não reconhecimento de que a autocratização não é inexorável e os casos de reversão são mais frequentes do que os de entronização de regimes.
MUITAS REVERSÕES – O VDEM finalmente acaba de produzir um mea culpa sobre este ponto, que foi objeto de críticas de vários analistas. Segundo o instituto, desde 1900, 48% dos casos de autocratização (U-turns) são revertidos.
Mais importante: nos últimos 30 anos, essa porcentagem sobe para 70%. E o principal: 93% dessas reversões levaram a regimes com qualidade igual ou superior aos regimes vigentes antes da autocratização. Se há uma tendência real, é a de democratização.
O segundo reconhecimento pelo VDEM é o de que a piora dos índices reflete o fato de que nas três últimas décadas a democracia estendeu-se a “lugares difíceis”, onde a probabilidade de reversão seria muito maior. São países muito pobres e/ou onde nunca houve regime representativo.
AUTOCRATIZAÇÃO – Por construção, portanto, tem havido mais países piorando do que melhorando índices. Daí a curva de sino (bell curve) nos índices de lugares difíceis.
Segundo o VDEM, a expressão “autocratização” denota decréscimos no índice de qualidade da democracia independentemente do seu nível. Assim quando o escore de países como Noruega ou Dinamarca —ou Belarus e Nicarágua— declinam, conclui-se que estão se “autocratizando”. O resultado é uma inflação de casos de autocratização.
O termo também é inadequado por sugerir governo de um único indivíduo.
Há também o problema simétrico: que a elevação do escore em não democracias, quando passam de tiranias personalistas para autocracias modernas e burocratizadas (ex. China), significa que estaria ocorrendo democratização, mesmo que essa mudança leve a probabilidades decrescentes de mudança nos regimes.
OUTROS ERROS – Um terceiro equívoco diz respeito a um possível viés subjetivo na codificação e comparabilidade. No caso do VDEM, malgrado a excelência técnica de seus pesquisadores e codificadores nos diversos países, eles produzem disparates.
O que, reconheço, são inevitáveis dado a magnitude da tarefa envolvida. Em seu relatório de 2023,
chega-se à uma conclusão inteiramente implausível: que o Canadá e Portugal haviam deixados de ser democracias liberais. Em seu relatório de 2024, não houve registro de anomalias como essa.
O sistema de governo seria uma Cleptocracia (*)?
O ministro Flávio Dino escreveu que o atual sistema de governo não é parlamentarista, nem presidencialista, nem semipresidencialista. É algo “singular”, cujo grau de ingerência do Congresso no orçamento público não se equipara a nenhum outro.
Suspeita-se, diz o ministro, que esse sistema de emendas possui uma “face oculta” (a falta de transparência) que leva a “perpetuação do poder” e “continuísmo político”.
O Congresso avançou sobre o Executivo na posse de uma ferramenta clássica de política: a alocação de recursos via orçamento público.
Consolidado como está, e com um Executivo sem votos no Legislativo, o atual sistema de governo não volta ao falecido “presidencialismo de coalizão”, que Lula achou que assumiria.
O Estado de S. Paulo, Opinião, 04/12/2024 | 20h00 Por William Waack
“(*) Cleptocracia é um governo cujos líderes corruptos (cleptocratas) usam o poder político para se apropriar da riqueza de sua nação, geralmente com o desvio ou apropriação indevida de fundos do governo às custas da população em geral.
Uma característica do roubo socioeconômico de base política é que muitas vezes não há anúncio público explicando ou se desculpando por apropriações indevidas, nem quaisquer acusações legais ou punições cobradas contra os infratores.
Em uma cleptocracia, os políticos corruptos enriquecem secretamente e ilegalmente, por meio de propinas, subornos e favores especiais, ou simplesmente direcionam fundos do estado para si próprios e seus associados.
Além disso, os cleptocratas frequentemente enviam grande parte de seus lucros para países estrangeiros, para garantir segurança financeira caso percam o poder.”
Acorda, Brasil!