Mario Sabino
Metrópoles
Bolsonarista de quatro costados, ele acusou, da tribuna da Câmara, o delegado da PF Fábio Shor de ter criado “relatórios absolutamente fraudulentos” para manter Filipe Martins, ex-assessor para assuntos internacionais de Jair Bolsonaro, na cadeia.
O gajo é suspeito de golpismo etc., e a PF o acusava de ter tentado fugir para Miami no final de 2022, a despeito de ele ter provado que não o fez. Ficou preso mesmo assim, durante seis meses, de acordo com as normas do Estado Novo de Direito que passaram a imperar no país. Agora, como a PF não admite que errou, Filipe Martins é acusado de ter forjado uma viagem aos Estados Unidos para escapar da prisão.
FORA DOS LIMITES – Classificar o enredo da PF de rocambolesco é pouco, e o deputado Marcel Van Hattem foi além nas suas adjetivações ao abordar o caso, confiante de que continuava valendo o artigo 53 da Constituição Federal, segundo o qual “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.
O Estado Novo de Direito, contudo, interpreta como quer o que não dá margem a interpretações e permitiu que Marcel Van Hattem fosse indiciado pela PF por ter ofendido a honra do delegado Fábio Shor.
Na terça-feira, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, ex-integrante do STF, falou à Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados. Na presença de Marcel Van Hattem, o ministro defendeu o indiciamento.
CONTRA A HONRA – “Sou um defensor da mais absoluta liberdade de expressão dos parlamentares. Ao longo dos 17 anos de Supremo, sempre defendi isso intransigentemente. Mas vi uma guinada de gênero na jurisprudência, interpretando o artigo 53 da Carta Magna, dizendo que a imunidade material e processual dos parlamentares não inclui os crimes contra a honra: calúnia, injúria e difamação. E o Supremo interpretou isso dessa maneira, até em proteção da própria atividade parlamentar”, afirmou Ricardo Lewandowski
Esse negócio de “dar guinadas” no que não dá margem a interpretação é complicado porque ofende também o português. É um paradoxo linguístico inconciliável ser, na mesma frase, “defensor da mais absoluta liberdade de expressão dos parlamentares”, ou seja, da imunidade de deputados e senadores, e admitir logo em seguida que essa liberdade não inclui o que seriam crimes contra a honra.
Salvo engano, o Estado Novo de Direito é o primeiro a relativizar a imunidade parlamentar desde 1968, quando a ditadura militar assumiu a sua ferocidade.
MOREIRA ALVES – Naquele ano que parecia tão longe e hoje está tão perto, o deputado Márcio Moreira Alves proferiu um discurso da tribuna da Câmara, conclamando para que houvesse um boicote às comemorações de 7 de setembro.
“As cúpulas militaristas procuram explorar o sentimento profundo de patriotismo do povo e pedirão aos colégios que desfilem junto com os algozes dos estudantes. Seria necessário que cada pai, cada mãe, se compenetrasse de que a presença dos seus filhos nesse desfile é o auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas. Portanto, que cada um boicote esse desfile”, disse Márcio Moreira Alves.
Furibundos, os militares queriam processá-lo pela Lei de Segurança Nacional, mas se depararam com a imunidade parlamentar assegurada pela Constituição de 1967, sem excepcionalidades.
SOLUÇÃO AI-5 – O problema, digamos assim, foi resolvido depois do AI-5, por meio de uma emenda constitucional imposta pela ditadura que rezava o seguinte:
“Os deputados e senadores são invioláveis, no exercício do mandato, por suas opiniões, palavras e votos, salvo nos casos de injúria, difamação ou calúnia, ou nos previstos na Lei de Segurança Nacional.”
Há de se convir que os militares ao menos se davam ao trabalho de mudar o texto da Constituição. Há de se concordar também que o Estado Novo de Direito que cancelou a imunidade de Marcel Van Hattem é uma das coisas mais velhas que existem.