Forças que nos desesperam são as mesmas que animam a cognição

WG Sebald: Reveries of a solitary walker | WG Sebald | The Guardian

W. G. Sebald debruçou-se sobre a infelicidade racional

Luiz Felipe Pondé
Folha

Pergunto-me como alguém pode acreditar na possibilidade de construirmos uma gigantesca inteligência artificial, que através da assimilação e uso ordenado de todo o conhecimento já produzido no mundo, realizaria o bem para o mundo? Como ainda não aprendemos que toda forma de totalitarismo foi erguida em nome de um bem político e social?

A contínua associação do mal às formas de totalitarismo revela nossa inapetência para a análise histórica do espaço político e social. O poder emana da loucura intrínseca do Sapiens. Mas, como todo louco, nós não podemos existir fora do delírio. O poder político não é um fato objetivo, ele é fruto da arbitrariedade que o homem introduz em meio à natureza, que é, em si, infeliz.

CONCEITO DE DEUS – Quem diz isso é o escritor alemão W.G. Sebald, radicado nos últimos anos de vida na Inglaterra, comentando a obra de Elias Canetti, judeu europeu. Canetti não pode ser reduzido a uma “nacionalidade”. Se assim o fizermos, melhor dizê-lo, cidadão do perdido Império Austro-Húngaro.

A busca da onisciência, seja para que fim for, ao final, é sempre para o controle perverso do mundo. Por isso o conceito de Deus está sempre por um triz: é possível você ser onisciente, onipresente e onipotente e não degenerar em monstro?

Os espaços de ignorância, de limitação espacial e de impotência são garantias contra o fim do mundo.

BEM ABSOLUTO – A estupidez humana se manifesta de forma mais clara na crença no progresso tecnológico como modo de bem absoluto. “O progresso é uma operação deficitária”, afirma Sebald na esteira de Kafka e Bernhard, ambos do século 20. Por isso, toda vez que ouvimos alguém do mundo corporativo entrar em êxtase quando fala em “inovação disruptiva na tecnologia” sentimos o odor do idiota invadindo a sala.

Sebald é um colosso. Autor de ficção ensaística e de crítica literária, parte da sua obra está traduzida em português pela Companhia das Letras.

Mas um dos seus maiores títulos está esgotado em português, até onde sei. “Die Beschreibung des Unglücks” de 1985 —”A Descrição da Infelicidade”— se trata de uma coletânea de ensaios sobre autores austríacos e austro-húngaros, e existem traduções em outras línguas. A lista de autores da coletânea é vasta.

CLIMA DE FREUD – Sua tese de fundo é de que esses autores estavam mergulhados na mesma atmosfera de Freud e seu grupo e, por isso mesmo, enxergaram como ninguém o mundo da perda da saúde mental na virada do século 19 para o 20. Eles fariam a descrição da infelicidade.

Podemos descrever a obra de Sebald como um esforço contínuo do olhar negativo sobre as coisas, movido, entre outros elementos, por um repertório vasto de referências. Ao começar a ler uma das suas peças literárias, você nunca sabe, ao certo, aonde irá chegar.

Um dos temas caros a Sebald é a natureza em si e sua relação com os humanos. Nesse universo, “Depois da Natureza”, de 1988, um poema, atravessa questões típicas de Sebald: exílio da natureza e da sociedade, memória e perdas que constituem a experiência humana e, especialmente, sua radicalização no “projeto deficitário” que é a modernidade.

PROFISSÃO DO FUTURO – Voltando a Canetti, esse grande cético para com a modernização “científica” e suas gavetas e carimbos. A formação acadêmica de Canetti era em química, profissão que sua família considerava a “profissão do futuro” e, por isso mesmo, ele fez o curso para se livrar da pressão familiar.

Hoje, talvez, seus familiares o tivessem pressionado para ser “designer de IA”. Incrível como toda vez que alguém enuncia frases como “profissão do futuro”, esse alguém soa muito brega, tomando-se como alguém com acurada percepção histórica.

Quem conhece a obra de Canetti sabe o horror que ele nutria pelos “processos naturais”. Para ele, enquanto existisse a morte não se poderia falar em esperança.

DISCURSO CIENTÍFICO – Radical em seu pensamento, Canetti desconfiava profundamente de toda forma de poder político, principalmente quando associado ao que hoje chamaríamos de “discurso científico”.

Sua utopia era, um dia, nenhuma forma de vida necessitar se alimentar. A cadeia alimentar seria prova de que, como diz Sebald, haveria num fato como este o halo sombrio da visão gnóstica de mundo —heresia cristã dos primeiros séculos da era comum— em que o criador seria um louco, um perverso ou, simplesmente, um demiurgo incompetente.

Já no prefácio da obra citada aqui, Sebald se indaga, afinal, qual a razão do olhar vidrado, de grande parte da literatura, fixado na infelicidade e perda da saúde mental. Sua resposta é que “as forças que animam o desespero são as mesmas energias que animam a cognição”.

3 thoughts on “Forças que nos desesperam são as mesmas que animam a cognição

  1. Ufa! Pensara que seria mais um na defesa do neoludismo.

    Afinal há gente ilustre forçando a barra pruma retroutopia impossível: voltarmos, pra uns, pra Idade Média e pra outros, os “proguesistas” pra meados de século passado.

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