Luiz Felipe Pondé
Folha
Caro, leia com atenção a citação abaixo, e, depois, voltaremos a falar. “Curiosa esta ciência, a política, ao alcance de qualquer pessoa, sem necessidade de estudos. Paraíso de preconceitos, terreno fértil para dogmas em que o pensamento superficial, inseparável da convicção, cresce como cogumelo no esterco”.
Esta citação é do romance “Quando os Pássaros Voltarem”, lançado pela editora Intrínseca, do escritor basco espanhol, que vive na Alemanha, Fernando Aramburu. O caráter basco não pode ser simplesmente apagado das referências a Aramburu, visto que ele é autor do premiado “Pátria”, livro que virou série da HBO. Recomendo fortemente este livro ou série para quem quer ter uma visão consistente de parte do drama basco.
PRÉ-SUICIDA – Este novo romance não se trata do tema basco, mas sim de algo mais universal. Toni, um professor de filosofia de escola, deprimido, abandonado pela detestada ex-mulher Amalia, que o deixa por uma mulher, figura medíocre e ressentida como 99% da humanidade, decide, na abertura do romance, se matar dali a um ano — isso não é spoiler porque está posto no começo.
A citação acima é já no último quarto do romance e está inserida no desprezo que o personagem tem pela política espanhola —seus comentários sobre o assunto também são universais, claro. Fato a notar que este personagem se inscreve na longa tradição de pessoas nas quais a depressão se torna um forte componente motor da lucidez decorrente do fracasso.
Raro encontrar tamanha lucidez no que se refere a política como na citação acima. Vejamos passo a passo.
CURIOSA CIÊNCIA – De cara, ao reconhecer essa “curiosa ciência, a política, ao alcance de qualquer pessoa, sem necessidade de estudos”, o autor já aponta para um dos traços mais intrigantes da prática política. Pressupõe-se que nela haja alguma ciência, mas esta mesma ciência, que todos podem ter para si, não necessita de qualquer estudo.
Democrática, portanto, e estúpida ao mesmo tempo. Nenhum esforço cognitivo é necessário para tê-la, já que todos podem tê-la, sem esforço de qualquer tipo. Daí que sua estupidez nasce do seu caráter democrático. Ruim, né? A política está à mão de todos.
“Paraíso de preconceitos…” é lindo. Na política, os preconceitos correm soltos. Você pode, inclusive, escolher o que melhor veste em você. Ao mesmo tempo, esta ciência curiosa, que reúne democracia e estupidez — seriam elas inseparáveis? —, serve como justificativa ideológica para todo tipo de preconceito travestido de discussão histórica, social. E, claro, política. Ódios belos correm livres pelas veias abertas da política.
REDUNDÂNCIA LÓGICA – “Terreno fértil para dogmas” é quase uma redundância lógica da afirmação anterior. Em política, encontramos um terreno perfeito para criarmos nosso jardim de dogmas. A irracionalidade se sente em casa diante de crenças absurdas, mas que se apresentam como fórmulas complexas da realidade.
“Em que o pensamento superficial, inseparável da convicção…”, diz Aramburu. As convicções, normalmente, dependem de você pensar de forma miseravelmente superficial. Esta afirmação convive com uma das hipóteses mais antigas acerca de uma das principais decorrências da prática cética em filosofia —a saber, a incerteza, a insegurança com relação a ter convicções políticas profundas.
Só estúpidos têm convicções fortes. Os demais mortais soçobram no mar de incertezas. Sobre isso, você não precisa ser um filósofo cético de formação, basta ler mais de dois livros na vida.
NO ESTERCO – Quando o autor diz “cresce como cogumelo no esterco”, não precisamos buscar sinônimos comuns para “esterco”. Todos os têm em mente ao ler essa frase.
A velocidade e a quantidade como cogumelos crescem em meio ao esterco nos oferece o ambiente estético perfeito, tanto para a visão quanto para o olfato, do que significa esse crescimento democrático, amplo e furioso de convicções políticas entre nós.
Perguntará o leitor desavisado: “Como sair dessa situação?” Claro, há graus nesse jardim de cogumelos, mas a qualidade de fundo permanece a mesma. A política, ainda que necessária, fede.