Eliane Cantanhêde
Estadão
Os pedidos de urgência lançados e aprovados na Câmara para o fim das delações premiadas de presos e para equiparar o aborto após 22 semanas de gravidez a homicídio não foram para valer, para realmente virarem leis. Então, por que foram lançados pela oposição e colocados em votação pelo presidente da Câmara, Arthur Lira? Para dar um susto no governo, jogar o presidente Lula contra a parede e animar o bloco bolsonarista.
Golpe de mestre ou jogo sujo da oposição, não importa. O fato é que o governo e o próprio Lula foram colocados duas vezes seguidas em situações difíceis, no mínimo desconfortável, e reagiram mal, num momento já delicado, com a popularidade medíocre do presidente, dúvidas sobre o equilíbrio fiscal e ataques especulativos contra Fernando Haddad. Dólar alto e, no Boletim Focus, projeções para inflação e juros sobem, a do PIB cai.
BAGUNÇAR O CORETO – Nesse ambiente propício para a oposição, bolsonaristas do Congresso sacaram um projeto explosivo para “bagunçar o coreto” governista, sujeitando meninas e mulheres a 20 anos de prisão, caso abortem após 22 semanas de gestação, mesmo nos casos já previstos em lei: estupro, anencefalia do feto ou risco de morte da grávida.
Lula jamais poderia acatar a proposta, pelo grau de crueldade, ou de “insanidade” dela, como ele viria a declarar só no terceiro dia após a urgência, e também porque atrairia chuvas e trovoadas de sua base histórica e o horror de setores liberais da sociedade. Mas também não era fácil bater de frente com parlamentares e eleitores evangélicos, nem com sua base no Congresso, que é muito heterogênea e, em grande parte, conservadora.
Bingo! O script adotado por Lula foi como os estrategistas bolsonaristas previram e desejaram: perplexidade no início e medo em seguida, enquanto ministros e líderes batiam cabeça, até o presidente declarar, com atraso que “é contra o aborto” é também contra o projeto declarado urgente pela Câmara.
CARNAVAL MACABRO – Foi uma manifestação correta, mas excessivamente ensaiada, oportunista, suficiente para pastores e seguidores de Bolsonaro fazerem um carnaval na internet e um espetáculo macabro no Senado — contra Lula, o governo e as esquerdas.
Agora, o projeto infame já cumpriu seu objetivo e pode voltar a dormitar nas gavetas da Câmara ou nos escaninhos cheios de maldade de Arthur Lira. Mesmo diante da reação contra o texto nas ruas, em entidades como a OAB e nas pesquisas do Senado na internet (88% de mais de um milhão de pessoas são contra), a “urgência”, votada em 24 segundos, serviu para deixar Lula contra a parede e ativar na memória de amplos setores conservadores que o PT e as esquerdas são pro-aborto — sem especificar que boa parte delas e da sociedade em geral é a favor, não do aborto em si, mas da descriminalização do aborto e do direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
TESTE DA DELAÇÃO – A estratégia bolsonarista já tinha sido testada, uma semana antes, quando a oposição resgatou da gaveta, e do mofo, um projeto de nove anos atrás contra delação premiada de presos, levou para o conselho de líderes da Câmara e teve o empurrão providencial do mesmo Arthur Lira para aprovar a urgência em plenário.
Como o texto original foi de um petista de quatro costados, o que restava a Lula, seus líderes e o seu núcleo duro parlamentar? Condenar um projeto feito sob encomenda para Lula e o PT na Lava Jato? Ou apoiar esse projeto, que hoje favorece diretamente Jair Bolsonaro?
É assim que Lula vai ficando em cima do muro, seus líderes parecem zonzos, desencontrados, Arthur Lira atrai votos para sua sucessão, o Centrão ora vai para um lado, ora para outro e o bolsonarismo se diverte até com teatro macabro e repugnante sobre aborto no plenário do Senado.