Procurador-geral Gonet precisa se libertar de Moraes
Wálter Maierovitch
do UOL
Com relação ao inquérito das fake news, com prazo de 180 dias de prorrogação determinado pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, virou sapo indigesto para o procurador-geral da República, Paulo Gonet, continuar a digerir. Este inquérito judicial representa uma excrescência no nosso sistema constitucional.
A competência do Ministério Público foi subtraída, e o PGR Gonet, que é um respeitado jurista, está como mero figurante de Moraes, para dar aparência de legitimidade ao inquérito. Isso tudo porque o juiz-julgador —no nosso sistema constitucional acusatório — é sujeito inerte, distante do acusador público e do defensor técnico.
IMPARCIALIDADE – Não adotamos o sistema de juizado de instrução nem o inquisitorial do direito eclesiástico, aquele de triste memória, da época da Inquisição.
Em outras palavras, no nosso sistema constitucional acusatório, o juiz não investiga, não apura, não acusa. Só julga com imparcialidade e, no devido processo legal, declara o direito.
O ministro Dias Toffoli fingiu esquecer a teoria geral do processo, ou seja, de o juiz não investigar, não imputar e não acusar. Numa imagem, ele usou uma cartola mágica e dela saiu, no lugar do coelho, a ilegítima solução do inquérito judicial.
PODER DE POLÍCIA – Com contorcionismos jurídicos, Toffoli entendeu, com lente de aumento na leitura do regimento interno da corte, deter o STF poder de polícia.
Aí, Toffoli, na presidência do STF, baixou uma portaria e designou, por livre escolha, o ministro Alexandre de Moraes para funções inquisitoriais.
À época, o STF e os seus ministros eram vítimas de uma enxurrada de fake news difundidas em redes sociais. Todas elas eram mensagens, além de falsas, ofensivas. E tinham por trás delas as digitais do beneficiado. No caso, era o então presidente Jair Bolsonaro, interessado em criar um ambiente de confronto entre os Poderes, com rebaixamento dos padrões éticos e a rasgar a Constituição.
MP “ESCANTEADO” – Pela Constituição e leis, uma autoridade judiciária, ao tomar conhecimento de crimes de ação penal pública, tem o poder-dever de encaminhar a notícia ao Ministério Público.
Ao receber a notícia, o Ministério Público —como representante do Estado-administração (único titular do “jus puniendi” —direito de punir) e como instituição legitimada à promoção da ação penal pública— toma as medidas necessárias.
Atenção: o direito de punir é do Estado-administração, e não do Estado-juiz. O Estado-juiz apenas o declara. Dentre as medidas, o MP poderá iniciar investigação ou requisitar a instauração de inquérito pela polícia judiciária.
TUDO ERRADO – Ora, ora. Na portaria de Toffoli subtraiu-se, claramente, a função reservada constitucionalmente ao Ministério Público. E o ministro Moraes começou a atuar como tal, sem legitimação constitucional.
Até a petrificada Têmis, a deusa da Justiça posta na frente do STF, sabia que a procuradora-geral da República à época, Raquel Dodge, e o seu sucessor, Augusto Aras, criariam empecilho às apurações. Como consequência do perfil filo-bolsonarista de Aras, as fake news continuariam.
O STF preferiu abandonar o caminho legal para chamar a PGR à responsabilidade, e isto acionando o Conselho Superior do Ministério Público. Atenção: não estou a falar do Conselho Nacional, mas do Conselho Superior, com competência constitucional para processar o procurador-geral da República.
JUIZ INQUISIDOR – Partiu-se, então, para a solução do inquérito judicial das fake news. E o plenário do STF aprovou a portaria do presidente Toffoli e a designação de Moraes, que passou a atuar como juiz instrutor, preparador, ou melhor, como um inquisidor.
Na época (junho de 2019), a PGR era comandada por Dodge, que solicitou informações ao STF sobre o inquérito e chegou a pedir o seu arquivamento. Aras foi indicado para o cargo em setembro de 2019 por Bolsonaro, e sua gestão ficou marcada por pedidos de arquivamento em ações contra o ex-presidente.
O mandato presidencial de Bolsonaro chegou ao fim, e o golpe de Estado que tentou promover não vingou. O golpismo chegou ao fim.
VÁRIOS CRIMES – Bolsonaro, em julgamento justo, perdeu os direitos políticos. E é objeto de investigações por vários crimes. Desde o peculato das joias, até os relativos aos atestados de falsos de vacinação, e a chegar ao golpe de Estado, atentado violento ao Estado de Direito e formação e liderança de organização criminosa.
A nossa Constituição permanece em pleno vigor. Idem o Estado democrático de Direito e a República. O golpista Bolsonaro saiu da cena oficial. Então, por que o inquérito judicial não é definitivamente enviado ao procurador-geral, Paulo Gonet, com perda do adjetivo judicial? Enfim, passarmos a ter inquéritos sob condução do PGR, como estabelece a Constituição.
Num pano rápido, o STF parece estar disposto a manter a musculatura política, um poder extra adquirido com anabolizante inconstitucional.