Marcus André Melo
Folha
A Argentina está celebrando este ano 40 anos de democracia ao tempo que assiste perplexa à eleição de Javier Milei. O paradoxo é objeto de reflexão dos cientistas políticos em um evento na semana passada em sua instituição mais qualificada na área, a Universidad Torcuato di Tella. A Argentina é peculiar: o golpe de 1976 ocorreu no país mais rico a sofrer golpe militar até então; o de 1966, idem; o de 1962 também!
O que explica a estabilidade democrática no país desde 1983, a mais longeva da América Latina com exceção de Costa Rica? Uma possível explicação é a combinação do desaparecimento de atores cujas preferências normativas não eram pela democracia, mas alternativas autoritárias: a esquerda revolucionária, representada sobretudo pelos Motoneros, e os militares. Os setores peronistas radicais à direita e à esquerda (que inclusive se enfrentaram em confrontos armados) desapareceram do jogo político.
PÓS-MALVINAS – O peronismo só se converteu à democracia na redemocratização que se seguiu à derrota do país na Guerra das Malvinas. E aceitou a derrota para os radicais (UCR), liderados por Alfonsín.
Como mostrou Scott Mainwaring o índice de “iliberalismo” do peronismo cai significativamente, mas não implicou no abandono de práticas extrainstitucionais como a mobilização radical (piqueteros) contra governos legitimamente eleitos. Além de abuso recorrente de poder sob Menem e os Kirchners.
A debacle do regime militar na guerra, seu fracasso econômico —que contrasta com países como o Chile ou o Brasil – e a escala da violação dos direitos humanos ocorrida deslegitimaram a opção autoritária de tal maneira que a democracia atual está ancorada em um equilíbrio estável, embora de baixa qualidade. O temor coletivo não se volta, portanto, para uma possível virada autoritária com Milei. Mas a anarquia.
EXTREMO CURIOSO – O risco de hiperinflação e hobbesianismo não dissuadiu o eleitorado de rechaçar o peronismo, como mostrei aqui. A Argentina está em um extremo curioso: grande estabilidade democrática e economia em frangalhos. Seu antípoda na região é o Peru, que vem experimentando forte dinamismo econômico, mas com instituições colapsadas.
O saldo da democracia na América Latina é positivo: se no início da terceira onda de democracia iniciada em 1978, 17 dos 20 países eram ditaduras, no momento, há apenas 2 (com exceção da autocracia sexagenária cubana), Venezuela e Nicarágua). Só neles a democracia morreu. Além disso, apenas um regime autoritário competitivo (El Salvador).
Desde 2000, o traço distintivo é a estabilidade, com ligeiro declínio médio nos indicadores. Mas elas se encontram numa armadilha de baixa qualidade da qual não conseguem escapar.