Bolsonaro desconhecia que, na forma da lei, tudo lhe pertencia
Carlos Newton
Quando publicamos nesta quarta-feira, dia 16, um artigo sobre o fato de o ex-presidente da República ter estranhamente formado uma quadrilha para desviar e vender relógios, joias, canetas e outros valiosos bens que na verdade pertenciam e ele e à mulher Michelle, sabíamos que as críticas seriam abundantes, nesse clima de acirrada polarização. Os fanáticos por Lula da Silva logo viriam em atropelo, para nos acusar de estar defendendo Jair Bolsonaro.
Tudo isso já era esperado. Se fosse ao contrário, os bolsonaristas iriam nos esculachar por estarmos defendendo Lula, e assim sucessivamente.
No entanto, caso analisassem o assunto com menos passionalismo, esses comentaristas iriam constatar que na verdade trata-se de mais um patético imbróglio jurídico neste país de bacharéis, que tem mais faculdades de Direito do que todos os demais países do mundo, somados.
PORTARIA E DECISÃO – Na forma da lei, o tema “presentes presidenciais” foi regulamentado pela Portaria 59, de 8 de novembro de 2018, baixada por Michel Temer para que ele pudesse se apossar dos presentes recebidos. Bem, se a norma legal valeu para Temer, que deixou o governo com a mala cheia e sem ser incomodado, é claro que a mesma portaria teria de valer em relação a seu sucessor, Jair Bolsonaro.
Mas os cultores de Lula não concordam, alegando que estaria valendo uma decisão do Tribunal de Contas da União (TCU), adotada em 2016, quando determinou que bens recebidos pelo presidente durante o exercício do mandato pertencem à União, à exceção dos perecíveis e dos presentes de “natureza personalíssima”.
É aí que a porca torce o rabo, como se dizia antigamente, porque o enquadramento ou não de um item como “personalíssimo” pode ter diferentes interpretações.
E LÁ VEM TEMER… – São a Lei 8.394/91 e o Decreto 4.344/02 que regulamentam o recebimento de presentes oficiais, abrangendo apenas os objetos recebidos em cerimônias oficiais. A decisão do TCU não inovou em nada, nem deveria fazê-lo, pois o tribunal não pode ter atuação legislativa.
Dois anos depois da decisão do TCU, o então presidente Temer, em final de mandato, resolveu complementar o que faltava na legislação — a definição de bens “personalíssimos”. Podia ter baixado um decreto, mas preferiu uma simples portaria da Secretaria de Governo, para não sujar as mãos, digamos assim, pois Temer é um constitucionalista, com obras publicadas e tudo o mais.
No inciso IV do Anexo, pela primeira vez foi então definido o que é “personalíssimo” na legislação especifica — “Bem de natureza personalíssima ou de consumo direto pelo recebedor: bens que, pela natureza, destinam-se ao uso próprio do recebedor, a exemplo das condecorações (grão colar, medalhas, troféus, prêmios, placas comemorativas), vestuários (camisa, calça, sapato, boné, chapéu, pijama, gravata), artigos de toalete (perfumes, maquiagem, cremes, diversos), roupas de casa (cama, mesa, banho), perecíveis (frutas secas, chás, bebidas alcóolicas, castanhas), artigos de escritório (canetas, cadernos, agendas, risque-rabisque, pastas), joias, semijoias e bijuterias”.
O QUE FEZ BOLSONARO? – Por incrível que pareça, em 17 de novembro de 2021, a Secretaria-Geral da Presidência baixou a Portaria 124, revogando a anterior, mas sem definir o que seriam os objetos personalíssimos. Ou seja, neste particular continuou legalmente valendo a definição da Portaria 59, embora oficialmente revogada.
Caramba, a comédia pastelão ficou pior ainda! Em tradução simultânea, a própria Presidência de Bolsonaro revogou a Portaria 59, que tornava ele e Michele (chamada de “consorte” no texto) legítimos proprietários de todos valiosíssimos relógios, canetas, joias e peças recebidas de presente, podendo inclusive transmitir esses preciosos objetos em herança e até vender todos eles, caso a União não se interessasse em comprá-los.
Portanto, foi por ser absolutamente ignorante que o trapalhão Bolsonaro quixotescamente montou uma quadrilha para roubar objetos que lhe pertenciam e depois vendê-los clandestinamente por um punhado de dólares, como diria o cineasta Sergio Leone.
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P.S. – Por hoje, apenas por hoje, vamos ficar por aqui, lembrando a máxima de François Rabelais — “A ignorância é a mãe de todos os males”. Aliás, Rabelais é chamado de médico nas enciclopédias, mas na verdade era padre. Na época em que vivia, não havia médicos, eram os padres que atendiam aos doentes e lhes prescreviam medicamentos.
Quanto a Bolsonaro, se fosse menos ignorante, saberia que os relógios, canetas de ouro e joias eram todos seus e de sua consorte. (C.N.)