Vera Magalhães
O Globo
E se fosse outro presidente, e não Lula, que reduzisse de 2 (18% do total) para 1 (9%) o número de mulheres integrantes da mais alta Corte de Justiça do país? E se fosse outro presidente a usar a nomeação de uma mulher para outro tribunal superior, menos estratégico nas questões de Estado e de grande repercussão política, como forma de atenuar o desgaste pela não nomeação de uma mulher para o Supremo Tribunal Federal (STF)?
E se fosse outro o chefe do Executivo que ignorasse a lísta tríplice da Procuradoria-Geral da República, encabeçada por uma mulher, para escolher, fora da lista, outro homem? E se fosse outro o presidente que designasse um ministro para o STF e ele, ato contínuo, passasse a exarar votos alinhados com o pensamento mais conservador da sociedade brasileira?
O CASO DA CAIXA – O que aconteceria se qualquer presidente cogitasse trocar uma mulher, técnica de carreira de um banco público, para contemplar o Centrão de Arthur Lira e, para não ficar tão feio, pedisse ao partido que escolhesse uma mulher e, pela falta de alguma candidata com currículo compatível com as atribuições, ascendesse ao posto de mais cotada uma ex-deputada ligada ao principal opositor do mesmo presidente?
Qual seria a reação do PT e dos movimentos sociais progressistas a cada uma dessas decisões de um presidente da República? Não se trata de ponderações hipotéticas. Todas elas refletem decisões já anunciadas, ou em franca maturação, por Lula.
Ao dar de ombros para todas as ponderações para que designasse uma mulher, preferencialmente uma mulher negra, para a cadeira que hoje cabe à presidente do STF, Rosa Weber, o presidente demonstra desapreço pela regra republicana de que deve haver equidade de gênero em postos de poder.
CASO DAS COTAS – Essa noção é a que permeia regras como as cotas para candidaturas femininas, seguidamente dribladas pelos partidos e, quando não cumpridas, varridas para debaixo do tapete por meio de anistias.
Para Lula, mais vale ter alguém para quem ele possa telefonar do que garantir que as mulheres, que representam a maioria da população brasileira e do eleitorado, se vejam minimamente representadas no tribunal que, conforme a História recente do Brasil é pródiga em confirmar, tem sido ator fundamental nas grandes decisões.
Chega a ser cinismo a conversa mole de que tudo bem reduzir à metade a já amplamente minoritária presença feminina no STF, uma vez que o presidente assinou ontem a indicação da advogada Daniela Teixeira para o Superior Tribunal de Justiça (STJ).
E O STJ? – Ganha um Rolex do Bolsonaro quem souber, de cabeça, sem Google ou ChatGPT, dizer o nome de cinco ministros do STJ ou citar duas decisões de impacto nacional que a Corte tenha tomado nos últimos dois anos.
Ademais, o STJ já tem um número bem maior de ministros, então não chega a ser alvissareira a quantidade levemente superior de mulheres na Corte. Serão 7 de 33, ou 21%, percentual ainda bem aquém das cotas mínimas que se estabelecem em qualquer política afirmativa de equidade, os paradigmáticos 30%.
A tendência a passar pano para anacronismos e posturas nada progressistas de Lula não vem de hoje. Mas o fato de o Brasil ter enfrentado o trauma de Bolsonaro a reforçou como nunca.
ARRANJOS INACEITÁVEIS – Os diferentes arranjos cogitados na reforma ministerial para incluir no governo duas siglas bolsonaristas nunca seriam aceitos se não partissem de Lula.
Nomes como o jurista Silvio Almeida, um portento do Direito brasileiro, em boa hora designado para os Direitos Humanos, passaram a figurar em listas de troca com uma dose de desrespeito que acaba por colocar em perspectiva a real intenção de sua nomeação inicial.
É importante que haja na sociedade o vigor civil para apontar em Lula idiossincrasias que seriam indicadas com dedo em riste noutros governantes, mesmo que de esquerda ou de centro. Importante para que ele mesmo reveja alguns desses atos tão contraditórios com sua promessa de campanha.