Demétrio Magnoli
Folha
Frustrar tentativas de golpe de Estado geralmente faz heróis. Pense em De Gaulle, no 23 de abril de 1961, em Juan Carlos, rei da Espanha, no 24 de fevereiro de 1981, e em Boris Ieltsin, no 19 de agosto de 1991. O Brasil foi exceção à regra, como se depreende do incisivo documentário “8/1: A Democracia Resiste”, de Julia Duailibi e Rafael Norton, produzido pela GloboNews. Naquele dia de 2023, sobraram vilões, mas não emergiram heróis.
Janja sai bem na fita, mas na medida exata em que Lula e seus conselheiros próximos saem chamuscados. Ela acendeu o alerta contra a hipótese de GLO, algo que cairia como luva no roteiro sonhado pelos golpistas. Surpreende, negativamente, que políticos calejados como o presidente, Flávio Dino, Alexandre Padilha e cia não tenham matado essa charada antes da jovem primeira-dama.
MÚCIO VACILOU – Quem se sai pior, no governo, é José Múcio. O ministro da Defesa pedia GLO. Desde sua indicação, antes da posse, Múcio resolveu declarar que os acampamentos bolsonaristas diante dos quartéis pertenciam “à democracia”, esquecendo-se do veto legal à ação política em áreas militares, especialmente quando se trata de conclamação a um golpe de Estado.
A leniência do ministro frente aos acampamentos –compartilhada, silenciosamente, pelo presidente– pavimentou a trilha para o desastre. O acampamento montado às portas do QG do Exército funcionou como trampolim para a mobilização golpista.
No 8/1, segundo ele mesmo, Dino limitou-se a “abrir o cardápio” de opções legais. Acatando o conselho de Janja, no calor da hora, Lula tomou a decisão certa: intervenção na segurança pública do DF. Aí, agora sabemos, Dino e Padilha esquivaram-se da missão em nome da preservação de seus mandatos de senador e deputado, respectivamente. Não achei bonito: se a democracia estava em jogo, como fugir à raia?
NAS MÃOS DE CAPPELLI – Sobrou Ricardo Cappelli, o lugar-tenente de Dino, que agarrou o touro pelo chifre. O governo deu-lhe as tarefas de limpar a Esplanada, o que ele fez, e de prender os golpistas acampados diante do QG do Exército, o que não tinha como fazer. O touro –isto é, os generais Júlio César Arruda, comandante do Exército, e Dutra de Menezes, chefe do Comando Militar do Planalto– era grande demais.
No seu ponto culminante, o documentário ilumina o impasse entre a tropa da PM do DF, liderada por Cappelli, e o bloqueio militar montado à frente do acampamento, que incluía veículos blindados.
Os dois generais decidiram proteger os golpistas contra o governo legal, usando o pretexto de que uma ação noturna provocaria um “banho de sangue”. As forças do Exército estavam prontas a enfrentar a tropa de choque da PM, mas supostamente temiam render uma chusma de zumbis encharcados em cerveja e lambuzados de churrasco. Contudo, registra o documentário, Lula preferiu ceder a ordenar, diretamente a Arruda, a realização das prisões.
EXÉRCITO DECIDIU – Infelizmente, o documentário lança poucas luzes sobre o desfecho: a reunião, no Comando Militar do Planalto, entre Arruda e generais do Alto Comando do Exército com Dino, Múcio, Cappelli e o coronel Fábio Augusto, da PM. Nela, após uma ameaça implícita de Arruda a Fábio Augusto, firmou-se o “acordo” de adiar as prisões para a manhã seguinte. “A última palavra foi do Exército”, explicou Duailibi, com precisão cirúrgica.
Sabia-se, naquele dia, que o tal “banho de sangue” não passava de uma alegação ridícula. Sabe-se, desde o dia seguinte, o motivo verdadeiro da resistência de Arruda em efetuar de imediato as prisões: no acampamento golpista circulavam parentes de altos oficiais do Exército. A informação, porém, não aparece no documentário.
Arruda, exonerado, deu lugar ao general Tomás Paiva, de credenciais legalistas impecáveis, que tem a complexa missão de descontaminar a oficialidade militar. De positivo, foi principalmente isso que produziu um 8/1 sem heróis.