Dalton Trevisan deixou a obra falar por ele e foi genial o tempo todo

Morre Dalton Trevisan, o “Vampiro de Curitiba” e gênio da literatura  brasileira, aos 99 anos | Diário de Curitiba

Trevisan recusava entrevistas e fugia dos fotógrafos

André de Leones
Estadão

Dados o aspecto reservado da personalidade do escritor curitibano Dalton Trevisan, que morreu nesta segunda-feira, 9, aos 99 anos, e a forma como ele conduziu sua vida profissional, a melhor maneira de abordar sua enorme contribuição à literatura é ignorar detalhes pessoais e privados e se fixar na produção ficcional.

O epíteto que lhe infligiram, relativo ao título de seu livro mais conhecido, O Vampiro de Curitiba, diz muito do estranhamento com que costumam ser vistos autores que preferem deixar que as obras falem por si, mantendo-se longe dos holofotes e da interminável procissão de egos que caracteriza o meio literário.

SEMPRE GENIAL – Trevisan ocupou-se de escrever e de silenciar, e foi genial em ambas as atividades. Graças à primeira dessas atividades, foi agraciado com os prêmios Camões, Machado de Assis, Portugal Telecom, APCA, Biblioteca Nacional e Jabuti, entre outros.

Embora tenha escrito um romance, “A Polaquinha”, e novelas como “Mirinha” e “Nem te Conto, João”, Trevisan firmou-se como um dos melhores e mais inventivos contistas brasileiros desde “Novelas Nada Exemplares”, lançado em 1959.

Antes, publicara histórias em folhetos e na revista “Joaquim” (1946-48), fundada por ele, Erasmo Pilotto e Antônio P. Walger. A concisão, “o olho aberto no escuro”, a utilização e reinvenção da linguagem coloquial, as imagens (“Bastava dizer João, eu beijava o sexto dedo do pé”; “cada morto é uma flor de cheiro diferente”; “O tropel de corvos no telhado: era a chuva”) e as repetições, elipses e supressões — tudo isso já marca presença em “Novelas Nada Exemplares”.

NO COTIDIANO – Ao se fixar nas existências corriqueiras, mais a-heroicas do que anti-heroicas, e não raro marcadas por ocorrências trágicas (“A mulher chorava de pé, a cabeça apoiada na parede. Uma vizinha esfregava vinagre nos pulsos do menino desmaiado. Debruçou-se o pai na cama — a criança virou o branco do olho”).

Também com circunstâncias ridículas (“Paulo reparou nas duas sombras. Uma, bule de chá, gorda e grávida. Outra, selvagem albatroz da noite, abrindo asas na glória de arremeter voo”), Trevisan cria e recria dramas domésticos e não raro comezinhos, elevando-os por meio de um trato único com a linguagem e as estruturas narrativas.

Em uma bibliografia extensa e geralmente associada à repetição, impressiona como o autor jamais se perde. É como se Curitiba e seus habitantes continuamente nos escapassem ou se tornassem outros, e outros, e outros, deixando estilhaços, fragmentos e restos humanos que, somados, apontam para uma completude maior, uma integridade ulterior — a própria obra literária de Dalton Trevisan

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