112Júlia Barbon
Folha
O escritório de advocacia de outrora dá lugar a uma cadeira de balanço e uma estante recheada de livros. “O fato de vocês estarem aqui hoje, de eu não estar trabalhando, é a demonstração de que eu realmente parei”, diz o advogado criminalista José Carlos Dias aos 85 anos, fumando seu cachimbo.
Prestes a ganhar um livro sobre sua vida, a ser lançado nesta quinta (12), o ex-ministro da Justiça pretendia se aposentar em 2018, mas adiou os planos ao ver a eleição de Jair Bolsonaro (PL). “Nós ainda corremos risco, precisamos estar vigilantes”, afirma ele sobre o recente indiciamento do ex-presidente sob suspeita de tentativa de golpe de Estado.
SILÊNCIO PERNICIOSO – Em seu apartamento em São Paulo, Dias opina que o silêncio de militares é pernicioso e que a teoria bolsonarista de que as Forças Armadas seriam um poder moderador “é um absurdo”. Avalia também que o PT “se portou de maneira muito covarde” ao defender a ditadura na Venezuela.
O advogado critica ainda a falta de cor dos partidos brasileiros, diz que o Congresso atual “é o pior que o país já viu” e que o STF “está melhor”, mas que o ministro Alexandre de Moraes exagera.
O indiciamento de Bolsonaro e o filme “Ainda Estou Aqui” trouxeram de volta discussões sobre a ditadura. Como avalia a qualidade desse debate no Brasil hoje?
Eu acompanhei muito o caso do [ex-deputado] Rubens Paiva, e ele nos traz a ideia de que precisamos continuar a lutar pela democracia. Eu não estou tranquilo no sentido de dizer que tudo isso já acabou. Esse relatório da Polícia Federal mostrou que nós corremos esse risco, então precisamos estar vigilantes. O silêncio é tão pernicioso quanto a manifestação. Eu tenho a convicção de que, se o golpe fosse levado adiante, outros militares e também civis se uniriam para derrubar o governo do Lula.
Como o senhor vê a tentativa de anistia a envolvidos no 8 de janeiro e em outros ataques à democracia?
A anistia só é admitida para alguém que foi punido, você não pode fazer anistia por antecipação. Aí não seria anistia, seria uma baderna que beneficiaria o Bolsonaro e todas as pessoas que estariam participando do golpe. Isso não tem cabimento. Mesmo a outra anistia, após o golpe de 1964, já foi um erro, porque ela beneficiava não só os que participaram do golpe, mas também os torturadores.
Quem defende a anistia argumenta que as penas foram exageradas e que um sentimento de injustiça poderia ser perigoso, por isso seria necessário pacificar o país.
Pacificar o país não é dizer tudo bem para toda aquela baderna que foi feita. Se há exageros na punição, isso pode ser visto caso a caso. Mas, como regra geral, tem que haver punição.
O senhor já disse que a missão da Comissão da Verdade era reescrever a história do Brasil. Poucos anos depois, um presidente foi eleito elogiando torturadores, a sede dos três Poderes foi invadida e militares são investigados por tentativa de golpe. Sente que o trabalho da comissão foi em vão?
Não, acho que foi muito importante. A grande missão era mostrar às novas gerações que houve uma ditadura e que a tortura foi usada de uma forma absolutamente descabida e com o apoio dos presidentes. Não foi algo que aconteceu na cabeça de um ou de outro, foi uma política de Estado. Isso ficou constado nos relatórios.
No livro, o senhor ensaia uma crítica ao Executivo, Legislativo e Judiciário atuais…
Nós temos hoje o pior Congresso que o Brasil já experimentou. Você encontra lá o pessoal da bala, os evangélicos que estão absolutamente desvirtuando a função do que é ser cristão. O Supremo Tribunal Federal está cometendo alguns desvios, mas está indo bem melhor. E o Executivo, o Lula está enfrentando essa dificuldade muito grande por causa do Congresso, mas ele, pessoalmente, se esforça por levar adiante um modelo melhor. Eu não sou petista, longe de mim, mas entendo que o Lula está caminhando, por exemplo, no respeito aos povos indígenas.
O STF está melhor em comparação ao quê? Ao que foi na ditadura, por exemplo. E mesmo no período do Bolsonaro. Hoje nós temos um Supremo muito mais aberto, muito embora eu ainda faça algumas restrições. Sou contra, por exemplo, como se portaram no julgamento do mensalão, olhando para a opinião pública. Alexandre de Moraes exagera, mas está atuando de uma maneira severa e julgando de uma forma correta, na maior parte das vezes.
Qual é o papel da Igreja Católica, ator importante durante a ditadura, na democracia hoje?
A CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] atuou agora muito melhor do que atuou no começo do golpe de 1964, quando a igreja apoiou a ditadura. Depois, houve uma transformação completa, surgiram dom Hélder Câmara e dom Paulo Evaristo Arns, a maior figura da defesa dos direitos dos perseguidos. Hoje, a Igreja Católica tem uma posição discreta. O que me preocupa quando eu falo dos evangélicos — não falo do protestantismo tradicional — são essas igrejas novas que atuam de uma maneira exagerada. A participação deles no Congresso é completamente fora de propósito.
Como vê a resistência e a demora do presidente Lula em condenar outras ditaduras na América Latina?
É um absurdo. É uma barbaridade imaginar o que está acontecendo na Venezuela. Não sei o que nós poderíamos fazer. Ele deveria ter sido mais enfático, e o PT se portou de uma maneira muito covarde.
Como não deixar a memória da ditadura morrer nas novas gerações?
Esse é o trabalho que a Comissão Arns, por exemplo, está fazendo junto a outras entidades. A sociedade civil tem que se erguer para que a democracia seja implantada de forma forte, severa, e tentar fazer uma reforma política. Os partidos têm que ter cara e cor. Tem que ter o partido socialista, o comunista, o liberal. Hoje você olha para os partidos no Brasil e eles estão absolutamente descoloridos.